“Eu sou a beira do mundo”.
Se há algo nas Psicoses que é profundamente característico é a relação peculiar com a linguagem. Relação essa que nos revela o Inconsciente a céu aberto e permite estudar o Aparelho Psíquico.
Mas não quero falar de Psicose. Quero falar da Estamira.
Essa mulher necessária na Cultura. Quem disse que só os letrados e engomados de plantão tem que ser escutados?
Estamira (espero que você já a conheça), vive num grande lixão em uma cidade brasileira. Vive? De propósito colocarei o verbo no presente. Não quero que ela tenha morrido. Estamira ainda vive para mim, me ensina muito, e abro essa licença para falar dela aqui no tempo presente.
Comecemos pelo seu nome. Ela não se apresentava como Estamira e sim como ESTA MIRA. “Eu sou esta mira”. Quanta beleza e também quanta revelação sobre sua estrutura. Ela é tudo quanto se pode ver. Até onde a mira alcança. Ela se confunde com o Real. Confundir-se com o Real, que forma sublime de falar da vastidão do mundo, da natureza. Ela desafia a tempestade!.
“A criação é toda abstrata, a água é abstrata (…), o fogo é abstrato. A Estamira também é abstrata”
Seu nome é um significante!
Estamira vem ao mundo pelas lentes do diretor Marcos Prado. Em 2000, ele fotografava no lixão Gramacho, no Rio de Janeiro.
Após tirar uma foto, uma mulher lhe anuncia que ela tem uma missão nessa vida: revelar a verdade. E que a missão dele era “revelar a minha missão”.
Assim, por 4 anos Marcos Prado acompanhou as rotinas de Estamira e nos brinda com o filme, multi premiado ao redor no mundo.
“Eu sou a beira do mundo e todos dependem de mim”. Só com essa frase daria para escrever um compêndio sobre a estrutura psíquica e sobre a psicose em especial.
Farei aqui um exercício, colocar em diálogo duas trajetórias de vida. De um lado Estamira e de outro o Presidente Schreber.
Daniel Paul Schreber ficou conhecido como um dos maiores casos de esquizofrenia da história da Psiquiatria e também da Psicanálise. Homem das leis, eminente advogado, é nomeado para um cargo, Presidente da Corte de Apelação de Leipzig. Cargo nomeado pelo rei. Não se pode recusar sob pena de crime de lesa majestade. Neste período, certa ocasião, entre o estado de sono e a vigília, ocorreu-lhe a ideia de que, ‘afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula’. Começam a surgir sintomas de hipocondria, insônia, ideias de perseguição, ilusões visuais e auditivas, distúrbios cenestésicos (percepção falseada a respeito dos órgãos internos ou ao esquema corporal), acreditava estar morto e em estado de decomposição, que seu corpo estava sendo manipulado em nome de um intuito sagrado. Apresentava ideias delirantes de caráter místico e religioso, onde teria comunicação direta com Deus, via seres místicos, ouvia música sagrada. É internado e colocado sob curatela (declaração de incapacidade sobre si próprio). Ficará internado em sanatórios boa parte de sua vida a partir dos 42 anos de idade. Viveu 69 anos. Nasceu em 1842 e morreu em 1911.
Durante um dos internamentos, em 1900, redige seu livro Memórias de um Doente dos Nervos, peça usada na apelação para a recuperação de seus direitos. A decisão judicial que devolveu os direitos civis a Schreber, contém a seguinte redação: ‘Acreditava que tinha a missão de redimir o mundo e restituir-lhe o estado perdido de beatitude. Isso, entretanto, só poderia realizar se primeiro se transformasse de homem em mulher.’ O livro, de uma beleza ímpar, revela todo o delírio e as alucinações do Presidente Schreber durante seu internamento.
Freud não conheceu o Presidente Schreber mas leu seu livro e a partir dele escreveu seu mais importante livro sobre as Psicoses. O psicanalista francês Jacques Lacan vai analisar o texto de Freud sobre o Presidente Schreber e também o livro do próprio presidente e dedicará um ano inteiro de estudos sobre As Psicoses.
Agora sim, mais contextualizados, vamos fazer Schreber e Estimaram conversarem.
Estamira e Schreber “revelam” um saber a que outros não tem acesso.
O Presidente Schreber afirmou que revelaria a toda humanidade as verdades vividas e comunicadas a ele, tal qual Estamira diz a Marcos Prado que ela tem uma missão, revelar a verdade.
O universo cosmológico em Schreber é composto por Deus, os raios que operam no corpo, a abóboda celeste, salas, seres celestiais, tudo com a finalidade de transformá-lo. O universo cosmológico em Estamira é algo semelhante. “Tem o eterno, tem o infinito, tem o além, tem o além do além.. O além dos além vocês ainda não viram.. cientista nenhum ainda viu o além dos além”. Tem as beiras, palavra tão cara a Estamira.
A cosmologia é o próprio inconsciente. Os seres cosmológicos não passam de projeções das divisões internas do sujeito. Os anjos, demônios, deuses, são complexas emanações dos sentimentos confusos, esburacados, faltantes da vida psíquica. Diz Lacan: “A relação do sujeito com o mundo é uma relação em espelho.”
Dizemos que a Psicose está mais perto do Real do que a Neurose e a Perversão, há menos camadas de proteção e separação do mundo interno e o mundo externo.
Lacan escreve: “Vocês podem entrever nessa teoria dos nervos divinos que falam e que podem ser integrados pelo sujeito, alguma coisa que não é completamente diferente do que eu ensino a vocês do modo como é preciso descrever o funcionamento dos inconscientes…. Freud nota, no fim de sua análise do caso Schreber, que nunca viu nada que se parecesse tanto com sua teoria da libido, com seus investimentos, reações de separação, influências à distância, quanto a teoria dos raios divinos de Schreber.”
Estamira diz: “Como é que eu sou lúcida”?
Talvez esse possa ser um dos maiores sofrimentos da psicose, a solidão, afinal essa lucidez em excesso a isola dos simples mortais, escondidos sobre camadas e camadas de alienação, auto enganação, assimilação.
Estamira não se deixa enganar. Quando vai à clínica psiquiátrica, denuncia, a respeito dos remédios: “Vocês não aprendem, vocês ‘copeiam’” (sic) “Hipocrisias e mentiras charlatais” (sic). “Ela é copiadora, estão só dopando”. E o que diz dos remédios? É “armação do dopante”.
Schreber e Estamira são diferentes dos mortais.
Estamira: “Eu sou perfeita, meus filhos são comuns.”
Schreber: “Deram-me luzes que raramente são dadas a um mortal.”
Sua loucura (excesso de lucidez) os diferencia, a proximidade do real os isola.
Freud fala sobre Schreber: “Ele próprio, está convencido, é o único objeto sobre o qual milagres divinos se realizam, sendo assim o ser humano mais notável que até hoje viveu sobre a Terra. A toda hora e a todo minuto, durante anos, experimentou estes milagres em seu corpo e teve-os confirmados pelas vozes que com ele conversaram.” Na psicose trata-se de Certeza e não de Realidade.
Estamira, em sua relação peculiar com os seres sagrados, vai eleger as palavras O “TROCADILO” e o “ESPERTO AO CONTRÁRIO”, para se referir a eles.
Sobre isso, Lacan diz que “é a linguagem de sabor particular e frequentemente extraordinário do delirante. É uma linguagem onde certas palavras ganham destaque especial, uma densidade que se manifesta algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhe esse caráter indescritivelmente neológico tão surpreendente nas produções da paranoia.”
O delírio religioso em Estamira precisa ser melhor entendido. Ficamos sabendo sobre sua vida que ela sofreu abuso, estupro. Estamira poderia ter construído um delírio religioso positivo onde Deus seria amoroso e bom. No entanto, em função do trauma, fica impossível confiar numa proteção divina, num ser superior que provê e protege. Então para manter o delírio religioso, ela cria o “esperto ao contrário”, o “trocadilo”, um deus ruim, e o rebaixa a uma instância menor, afinal ela, Estamira, conhece o “além dos além dos além, que ninguém conhece. Estamira é melhor que deus, está acima destes antagonismos do bem e do mal, sabe que tudo é invenção. “Alguém largou de morrer?”, pergunta ela ao ser confrontada com a suposta salvação prometida ao crente.
A Estamira é o próprio Inconsciente.
Sim, há megalomania na psicose, e há megalomania em Estamira. E o que mais admiro nela é que sua megalomania não está a serviço apenas de sua defesa narcísica. Ela consegue ir além.
Schreber, por sua vez, vai cada vez mais agravando seu quadro. Em sua crescente megalomania, ele vai dar origem “uma nova raça pura, tendo copulado com Deus em 1.000 anos.
Freud escreveu: “Suas ideias delirantes assumiram gradativamente caráter místico e religioso; achava-se em comunicação direta com Deus, era joguete de demônios, via “aparições miraculosas”, ouvia “música sagrada”, e, no final, chegou mesmo a acreditar que estava vivendo em outro mundo.”
A megalomania em Estamira é mais poética, ela é a beira do mundo, conhece Jesus, conhece o além dos além e ninguém vive sem Estamira.
Freud sentencia: “O delírio de ser Redentor constitui fantasia que nos é familiar, pela frequência com que forma o núcleo da paranoia religiosa”
Pelo documentário podemos chegar à etiologia da Loucura em Estamira: A loucura da mãe, sua culpa pelo internamento dela, o abuso sexual infantil, a traumática traição do marido e a perda da confiança e o estupro quando adulta.
Como toda defesa narcísica ameaçada, Estamira também lança mão da agressividade, mas o faz sobre ideias, sobre sua não suportabilidade da ignorância alheia, em especial nos temas de alienação religiosa. Estamira tem a verdade (e, reconheçamos, sim a tem!).
Freud escreveu que “o ponto culminante do sistema delirante do paciente é a sua crença de ter a missão de redimir o mundo e restituir à humanidade o estado perdido de beatitude.”
E, para finalizar, aquela que considero uma das mais fortes frases de Estamira. Diz ela: “SABIA QUE TUDO O QUE É IMAGINÁRIO EXISTE, E É, E TEM?”.
1 comentário em “Estamira”
Muito bom. Obrigado.