A Ponte

Filme: A Ponte - The Bridge (2005) - Golden Gate Nevoeiro San Francisco
A Ponte The Bridge 2006 filme poster
“Pode tirar minha foto?”

Essa frase banal, cotidiana, revela o dia a dia das máquinas que captam fragmentos de realidade. Mas aqui, essa frase tem um contexto, e ele é terrível.

Ela foi proferida por uma turista a um desconhecido, em cima de uma ponte. O desconhecido era um rapaz que estava prestes a se matar, a se lançar da ponte. Vivendo o pior momento de angústia de sua vida, se deu conta de que seu drama não era notado por ninguém. Ele se joga da ponte, a mesma ponte de onde pulam para a morte inúmeras pessoas todos os anos. 

Afortunadamente  – o que muitos chamariam de um milagre – o rapaz sobrevive e é graças a isso que sabemos dessa história. Fico pensando quantas histórias acabam a cada salto para a morte.  

Quando ele concede uma entrevista para falar deste dia, assim se expressa: “chegou uma turista, me pediu para tirar uma foto. Merda. Ninguém se importa. E pulei da ponte”.

A visão destes suicidas, captados pelas lentes, dão conta de mostrar que a maioria deles ficam um tempo grande em cima da ponte, ensaiando o salto, calculando, mas as palavras do nosso sobrevivente me fazem pensar que essas pessoas vão para a ponte não para pular, mas para serem salvas.

Porém, o mundo contemporâneo marcado pela velocidade, pela objetividade, pelo exagerado narcisismo que não permite enxergar o outro, não permite a necessária sensibilidade para se ‘importar’ com o drama de um desconhecido em cima de uma ponte.

De vez em quando, uma exceção acaba surgindo, veremos adiante.

O filme documentário A Ponte é de uma realidade chocante. Câmeras foram instaladas de um lado e de outro da Ponte Golden Gate, nos Estados Unidos, durante 365 dias e filmaram os suicídios que ali ocorreram. As famílias dos suicidas foram identificadas, bem como os sobreviventes, e é a partir destes relatos que podemos compreender um pouco mais sobre esse tão complexo fenômeno, o suicídio.

Por quê uma ponte? Lugar de conexão de um lugar a outro, tem aí um significado intrínseco, mas também revela a projeção no espaço público, um espetáculo em um lugar de passagem.

Para além das pessoas que se lançam da ponte, várias outras sozinhas param e olham para baixo. Em que estariam pensando? 

Mundialmente conhecida como um dos lugares onde mais pessoas se suicidam, encontramos na entrada da Ponte uma placa desaconselhando o suicídio e oferecendo um telefone de apoio para as pessoas com problemas. A Ponte Golden Gate em São Francisco tem comprimento de 2.737 metros, largura de 27 metros, altura de 227 metros e por ela trafegam 100 mil veículos por dia. Surpreende o cálculo de que a queda chega a 120 km/h e demora de 4 a 7 segundos até tocar a água.

Um parente de uma suicida afirma: “Estava agindo de forma estranha. Os adolescentes eram assim mesmo. Ela sofreu muitas rejeições dolorosas. Ela queria romantismo. Uma amiga também pulou da ponte”. Estaria dizendo que os suicidas dão algum sinal, mostram que algo não vai bem? De qualquer forma parece que esses sinais só ganham sentido após a morte trágica. Por quê não antes? Por quê não escutamos antes?

Outra sequência de falas de um familiar sobre o filho que pulou da ponte nos alerta sobre várias questões importantes. Vejamos: “Ele ainda está vivo para mim. Ele pensava nisso todos os dias. É o sofrimento. Quando fica insuportável, fazemos o que for. Acho que os remédios o fizeram piorar. Achávamos que ia ajudar superando as crises. Mas aí entra a loucura. Quando o paciente fica forte é quando ele cria coragem.”

De alguma forma a Depressão protege, conforme nos ensina o psicanalista Pierre Fédida. Apressar uma retirada da complexidade depressiva pode deixar um paciente desprotegido. Freud também alertou para o caráter da produção de alguma satisfação nos quadros depressivos. A medicação sempre precisa ser vista com cautela, por vezes pode encorajar. “Devemos ajudá-los a melhorar ou não?”, diz o familiar, revelando o tanto de confusão a que a família fica exposta. “Ele pesquisou por meses. E nas duas últimas semanas fez os preparativos finais.” Essas frases mostram o caráter muitas vezes premeditado para o ato, consciente, racional e não resultado apenas de um ato intempestivo. 

Tamanha complexidade permite enxergar que alguns suicídios são comparados a obras de arte. Uma pintura horrorosa. Albert Camus escreveu: “Um ato como esse, é preparado no silencio do coração, como se prepara uma grande obra de arte.”

A psicanalista Deyse Justos nos lembra que “não é sem uma dose de satisfação pulsional que o sujeito se lança para a morte.”

Interessantes as pontes. Costume famoso e romanceado em Paris e vários outros lugares pelo mundo, namorados colocam cadeados na ponte para as juras de amor. O cadeado representando o laço, o desejo de permanecer junto, de vida, de futuro. Mas essas mesmas pontes famosas podem também se tornar sinal da desagregação, da separação absoluta, da passagem sem volta.

Falei no início de uma exceção. Dois homens salvaram um rapaz que ia pular. O que eles dizem é belo. “…pôs a mochila de volta rapidamente. Parecia nervoso. E nós o atrapalhamos. Por isso ele não pulou. …falou com ele porque notou algo estranho. A linguagem do corpo e as vibrações eram estranhas.” Aqui os sinais emitidos foram ouvidos. Muitas vezes o suicida emite sinais. Quem nota? Quem está atento ao outro? “Eu logo reparei e perguntei: Tudo bem? O que houve?” Duas perguntas e uma vida pode iniciar um processo de ressignificação. 

Ainda um sobrevivente diz: “Antes de ir para a Ponte, parei no Wal-Greens e fiz minha última refeição. Fiquei parado 40 minutos. Eu só chorava.” Muitos suicidas não querem morrer, querem esclarecer suas confusões, escapar dos dilemas. Quanta dúvida! E ter que enfrentar o drama do desapego à vida. A. Alvares, no livro O deus selvagem, escreve: “Acredito que exista toda uma classe de suicidas que põem fim à própria vida não para morrer, mas para escapar de uma confusão interna, para clarear suas mentes. Ele joga sua vida fora para poder, enfim, viver direito.”

Diz Lacan que “a vida, em non-sense, aspira à morte”.

Medidas de combate ao suicídio na ponte foram tomadas e vão desde a criação de uma patrulha, o treinamento de funcionários da ponte para ações de salvamento de suicidas, barreiras contra suicídios, cercas e outras medidas preventivas sempre estão em debates, também a instalação de uma rede debaixo da ponte para evitar a queda fatal na água.

Esta coluna não é para falar sobre o suicídio. Mas prestarmos atenção e treinarmos nossa escuta a partir das tantas frases aqui transcritas, sejam elas de parentes ou de sobreviventes de tentativas de suicídio. Elas são muito reveladoras.

Acima de tudo elas revelam as faces do sofrimento humano a que muitos de nós estamos expostos, a condição do sujeito no mundo, nos revelam em alguma medida, a nós todos, expostos aos ritmos do trabalho, às exigências contemporâneas, à difícil continuidade das relações sociais tão marcadas pela exigência do gozo imediato, à dificuldade de existir de tantos grupos, à difícil referência para a vida, aos cruéis processos de exclusão, ao medo generalizado e um abuso das experiências de vazio e abandono. 

Que as pontes sejam mais para unir, criar laços, encurtar distâncias sociais e gerar vida!