Sara Goldfarb

Sara Goldfarb - Réquiem para um Sonho - 2000 - filme drama - Cinema e Psicanálise
“Fui escolhida.”

O diretor Darren Aronofski nos fará conhecer Sara. Vem dela a frase acima. Ela foi escolhida para participar de um programa de televisão.

O filme Réquiem para um sonho fala sobre a condição humana, sujeitos submetidos à falta, que se entregam apaixonadamente à crença do encontro com o objeto salvador, aquele que acabaria com a angústia, com a falta, que traria a felicidade sem limites. Tal crença pode se tornar a causa do encontro com a dimensão trágica e é disso que trata o filme. É arte no melhor estilo provocativo, impacta e incomoda. 

Uma televisão acorrentada indica de início algo que já sabemos: o filho de Sara é usuário de drogas, muitos deles vendem os pertences da família para trocar por drogas. Sara, trancada do quarto, resiste o quanto pode e, derrotada pela sedução e ameaça do filho, entrega-lhe a chave do cadeado que prende a televisão. Refém do circuito pulsional, a família vive o pesadelo da circulação das drogas dentro da casa. 

A televisão é vendia. E Sara vai ao receptador e, de novo, compra a televisão.

Sara assiste televisão e come chocolate. Seu mundo de prazeres está completo e organizado. Ordinário, sem muito encantamento, seu dia se resume a isso. 

O telefone toca. Uma voz lhe comunica que ela “foi escolhida”. Seduzida pela oferta de aparecer na televisão, vê despertar seu ideal de eu já meio empoeirado. É a demanda do Outro, sedutora e chamativa. Lacan pergunta: “O que institui a demanda? A demanda está ligada, antes de mais nada, a algo que está nas próprias premissas da linguagem, isto é, a existência de uma invocação…”

Logo essa escolha se tornará uma oferta alienante, ela foi capturada pelo Outro, deixou-se capturar por uma promessa, é tudo o que mais vemos no mundo da sociedade do consumo e dos shows televisivos. Captura que lembra a alienação radical no início da vida, em que, na fase da constituição do Eu, por Lacan chamado de Estado do Espelho, o sujeito não tem alternativa diante da visão do semelhante e se lança nessa imagem perfeita. 

Mas há uma cena do passado, uma nostalgia. Ela, o marido, o filho e um vestido vermelho. Esse eu ideal, Sara dentro do vestido vermelho, que ficou no passado, agora ressurge poderoso, na forma de ideal de eu, de reviver o gozo daquele momento glorioso. 

Sara desarquiva o vestido. Mas… ele não serve mais. Estava guardado para uma grande ocasião, e, quando ela chega, o Real informa que ela não é mais a mesma. Mas ela precisa caber no vestido; afinal vai existir na televisão, foi escolhida.

Uma dieta lhe promete perder 5 quilos em 10 dias. Impulsionada por uma promessa de satisfação e um imperativo de gozar que não pondera os custos, Sara se entrega à dieta, o sacrifício vale a apena. 

Em estado de privação, tendo deixado seu prazer pela comida de lado, ela começa a alucinar com alimentos. Em estado de privação, o aparelho psíquico alucina a presença do objeto na tentativa de satisfazer a falta. Lembram das alucinações dos oásis no deserto? Freud escreveu que alucinar a presença do objeto é fantasiar, é desejar.

A voz da televisão comunica que ela vai receber uma carta com um questionário. Sara se entrega à tarefa de verificar a caixa de correio na expectativa de encontrar a carta que a tornará mais próxima de seu sonho. Cria-se nela uma conduta repetitiva. Mas que canteiro de sintomas a vida humana!

Uma “amiga” coloca Sara à frente com outra promessa alienante, deixando entender que dietas não resolvem e que ela não será capaz de perder o peso necessário para entrar no vestido. Lhe apresenta remédios milagrosos. Outra sedução. Tal qual uma guloseima infantil, suas pílulas são: roxa pela manhã, azul à tarde, laranja à noitinha e verde antes de dormir. O mundo dos medicamentos desenrola uma complexa cadeia que perpassa várias camadas de atuação social, da televisão, dos consultórios, da exploração do narcisismo, das grandes redes de farmácias, dos comerciais de televisão, dos congressos, do cidadão comum transformado em pequeno diagnosticador cotidiano. 

Quando o filho nota a mudança na mãe, em espelho ele se enxerga e diz: “Mãe, você está viciada”. Ao que ela responde: “Como viciada? O médico é muito amável”. Duas frases, dois modos de alienação. Mas o pior está por vir. Tentando convencer o filho de que seus sacrifícios são justificáveis, ela profere uma sequência de frases. Destaco seis delas:

  1. “Viu que eu estava sentada no melhor lugar?”.

Ela se refere ao grupo de vizinhas que enfileiram suas cadeiras para tomar sol na calçada. Após o anúncio que vai aparecer na televisão, seu lugar junto às amigas melhorou, sua posição na calçada ganhou destaque. Ter proximidade com alguma celebridade faz com que muitas pessoas se sintam especiais. A sociedade do espetáculo, expressão criada por Guy Debord, é movida pela pouca capacidade de crítica social no mundo pós-guerras devido à aceleração da lógica do capitalismo. Seu ápice são os reality shows.

  1. “Sou alguém agora, Harry.”

Frase que inclui a dimensão do ser no tempo. O ‘agora’ da frase nos faz pensar o que era da vida dela antes. 

3) “Todo mundo gosta de mim.”

Sara acredita que as pessoas gostam ou vão gostar dela porque ela vai aparecer na televisão. Atrair os olhares do outro e se alimentar de uma imagem projetada de perfeição é o que se procura alcançar com isso. Causar inveja torna-se a medida de felicidade e de alimento narcísico. 

  1. “É uma boa razão para eu me levantar de manhã.”

Sim, precisamos de razões para nos levantarmos pela manhã! Sara vê na ida ao programa de televisão uma boa razão para se levantar pela manhã. Michel Aires de Souza nos lembra que …”a sociedade de consumo propicia uma fauna e uma flora de objetos e prazeres inimagináveis, mas também produz o esquecimento e a alienação sobre nossas próprias vidas. […] as pessoas vivem vidas que não escolheram, se aferram a valores, crenças e modos de ser e pensar sem nunca refletirem sobre eles ou sobre suas escolhas.”

  1. “Motivo para eu perder peso.”

Aparecer na televisão e os sacrifícios a que ele se expõe parecem justificas seus atos.

  1. “É uma razão para sorrir.”

O riso e a dor andam juntos em Sara. De que ela acredita sorrir quando sua vida está a cada instante mais perigosa? 

As pílulas de Sara começam a perder efeito. É assim na sociedade de consumo e é assim com a pulsão, depois de um tempo, o objeto já não satisfaz. Ela começa misturar os comprimidos em uma tentativa desesperada de conter uma angústia crescente. A percepção começa a ficar mais e mais alterada, as alucinações aumentam. Sara está desintegrando. 

Em suas alucinações, a geladeira começa a tremer. Geladeira vazia, Sara vazia. O médico pode lhe ajudar? No consultório, sem que se olhe olho no olho, sem afeto, sem acolhimento, sem nada, transcorre o seguinte diálogo:

Médico: “Qual o problema? O peso está bom”.

Sara: “Mas eu não. Está tudo confuso”.

Médico: “Compre esses remédios”.

É assim no mundo das drogas: se você está mal, precisa aumentar a dose. O modo de proceder do médico, frio, quase desumano, revela a face mais terrível dessa cadeia: não interessa mais o sujeito; importam apenas os resultados e a eficácia dos medicamentos. 

Sara está cada vez mais em desordem, não come direito, está pálida, anda com dificuldade, tem medo de tudo. A paranoia se instalou. Realidade e fantasia não se diferenciam. Torna-se psicótica. Mergulha na alucinação do Studio de TV, do almejado programa de auditório. O Studio de TV se torna o inconsciente de Sara. Ela já não distingue mais nada, enfermeiros e pessoas do palco são a mesma coisa.

Ela estava contente antes do telefonema, sem desejos, realizada com sua televisão e o chocolate. Com o telefonema, desperta o Desejo, a possibilidade do gozo e a promessa da realização de um ideal que ficou no passado. 

Perdida no tempo da loucura, desvitalizada, tentando desesperadamente se agarrar em algo que ainda possa lhe dizer quem ela é, busca uma mínima sustentação de um saber de si que vai ficando distante. Em sua loucura, visualiza seu filho, ainda novo, na formatura, e ela bonita no vestido vermelho.

A geladeira salta em direção a Sara enquanto ela alucina com sua própria imagem no programa de auditório. A geladeira é a metáfora perfeita para o desejo insatisfeito tornado alucinação. Desejo que faz pressão. É a sua abstinência! Nesse momento, o espectro de Sara e o apresentador do programa de televisão invadem sua casa. Sara vê a si mesma zombando da casa, dos objetos, dela. Um superego tirânico se apodera e goza ao humilhá-la. Na psicose, a força do superego torna a fantasia real. Todos no Studio de TV riem dela. O ideal não se realiza. Aqui, vale uma explicação de como o superego funciona na dialética do eu ideal e do ideal de eu. Ela foge enlouquecida para a rua. A câmera mostra a casa intacta. Tudo era alucinação! Entra na ambulância que a levará a internamento. Recusa comer. O tratamento violento com eletrochoque é o nível extremo a que nos leva o diretor do filme. Sofremos com Sara.

Qual seria a saída para Sara? Retirar o gozo do lugar indizível onde ele se enclausura, o corpo, as satisfações do corpo, das tramas confusas dos sentidos e da relação com o Outro, e trazê-lo para a linguagem, para a palavra. Possibilidade única. 

Néstor Braunstein em seu livro Gozo, afirma que “a relação das palavras com o gozo é o que faz da psicanálise uma ética do bem dizer”. É a possibilidade da passagem do gozo ao desejo. O inconsciente é o modo do gozo se expressar. Lacan dirá que basta que o inconsciente goze e não queira saber de nada disso. Sofrer é não conseguir transformar o gozo em algo articulável. O sujeito sofre porque o gozo ao qual ele está submetido não se diz e paralisa o sujeito na repetição dos sofrimentos, da dor, da pulsão de morte. Libertar-se do gozo (do sofrimento indizível) é o caminho para a liberdade, tão necessária ao desejo, à vida. 

Somente um atravessamento pela palavra junto a alguém que saiba escutar é que poderá colocar esse sujeito em questão a se perguntar, afinal, que coisa é essa que em si trabalha a ponto de submetê-lo a tamanhos sofrimentos.

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