Quem são os pais?

“Naquele dia estava fazendo o maior sol.” 

Muitos mitos de origem estabelecem uma conexão entre um evento da natureza e o nascimento de uma pessoa ou de algum objeto ou mesmo alimento importante. Aqui, um pai relembra o nascimento do filho com o ‘maior sol naquele dia’. 

Em família o pai estava ausente no dia do parto, a mãe havia adoecido e teve hemorragias após o nascimento do filho. 

Muitos pais do mundo contemporâneo sequer conseguem vivenciar a experiência do nascimento do filho, preocupados que estão com as necessidades de produzir para uma sociedade capitalista que cada vez mais despersonaliza as experiências humanas.

O filme Pais & Filhos do genial diretor japonês Hirokazu Kore-eda trata justamente disso, mostrar a diferença na constituição das famílias e nos significados de ter um filho. 

ALERTA DE SPOILER !

As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.

Pais & Filhos - Filme 2013 - Cinema e Psicanálise

Dois pais, duas mães, dois filhos, duas famílias e muitas diferenças. O que une esses dois polos tão distantes é um daqueles acontecimentos raros, mas ainda presentes nas culturas e em várias épocas: bebês foram trocados no nascimento. 

Uma das famílias nos é apresentada como o lado rico da trama, casa exuberante, porém fria, filho com vários compromissos, a rigidez para aprender tocar piano. Aqui o pai trabalha muito e não esteve no nascimento do filho. A esposa reclama a ausência do marido que mesmo no domingo passa trabalhando, deixando em casa apenas sua ausência. “Quando terminar o projeto poderei ficar mais tempo…”, diz ele. Esse é o pai cujo ‘projeto’ toma mais tempo em grau de importância do que a convivência familiar. “Faz 6 anos que você fala isso, ” diz a esposa quase resignada. Esse pai tem um olhar crítico para o filho a quem acusa de miar demais. É uma casa vazia, sem cor, sem rituais, limpa.

Agora os meninos estão com seis anos e é quando chega a notícia da troca. O pai diz “agora está tudo explicado. ” A diferença entre o filho ideal e o filho real se impõe. A mãe, cheia de culpa, diz “Como eu não percebi? ”

A essa família, a esse casal rico em finanças, chamarei daqui para frente de ‘primeiro casal’. 

De outro lado, outra família, da parte financeira menos favorecida da história. Mas aqui o pai do outro menino trocado na maternidade diz que “aquele dia estava fazendo o maior sol.” A data de nascimento do filho foi tão importante que a lembrança do sol e sua magnitude foram usados para registrar a importância daquele momento. Aqui tem rituais, tem simbolismos, tem culto aos ancestrais, mostrando que a paternidade e mesmo toda construção de parentesco está referenciada numa ordem simbólica, ancestral. Tem tradição. 

A essa família, a esse casal que observa o sol, chamarei de ‘segundo casal’. 

Que contraste com o outro pai!

E aqui podemos propor uma questão: o que é um pai? O que é ser pai?

A recomendação do hospital é para que se faça “a troca”, que os filhos sejam trocados de casa, de lugar, de pais. 

“Alguém trocaria um bichinho de estimação? ”

A frase acima é dita pelo pai do segundo casal, o pai do sol, frase que ele sua para expressar sua indignação. Se mesmo um bichinho já seria absurdo trocar, muito mais absurdo trocar crianças. Essa frase condensa um pensamento: pai é quem cria, quem se propõe a ser modelo, quem convive.

Enquanto o primeiro casal sempre chega com a pontualidade das horas computadas pelo tempo da sociedade capitalista, o segundo casal sempre chega atrasado, menos comprometidos com a equação contemporânea do tempo é dinheiro. Tempo é vida.

No trabalho do primeiro pai, um colega encontra a pior das soluções. “Por que não criar os dois? ” Afinal, na lógica deles o dinheiro pode comprar tudo. Mas pode mesmo? E o outro casal, por ter menos dinheiro, ficaria sem o filho? É a lógica perversa que faz o sujeito e a subjetividade do outro não ser levada em conta.

Pais e Filhos - Papo de Cinema

O filme constrói a estética dos casais, revelando muito de suas vidas, como se relacionam, o que pensam. 

O segundo casal, eles vestem-se mais despojados, com roupas mais coloridas, menos formais. É nítido o contraste com o primeiro casal, vestidos sempre com roupas formais, com cores pastéis. Ainda que no Japão a diferença de classe social e a distribuição de renda não seja tão desigual, somos informados do quanto ela existe e põe em confronto diferenças bem marcadas.

Os filhos do segundo casal são mais espontâneos, falantes, enquanto o filho único do primeiro casal é mais contido.

A cena em que pai e filho dobram de forma igual os canudinhos está ali para mostrar que a identificação, o saber fazer, se transmite pela convivência. As discussões sobre a consanguinidade e os laços de afeto estão presentes aqui. No Direito já é reconhecida a paternidade afetiva. É o reconhecimento jurídico da paternidade e maternidade baseado nas relações de afeto. 

“Eu fiz de propósito. Eles estavam tão felizes. ”

Quanto à troca dos bebês, foi feita por uma enfermeira. A frase em destaque acima foi proferida por ela. A inveja diz de alguém que se sente mal com o bem do outro. Um sentimento negativo lhe invade quando está diante da felicidade alheia. Surge o desejo de possuir o objeto de desejo do outro, o desejo de destruir esse objeto ou o desejo de ver o outro sem o objeto. Olhar para o outro com a posse do objeto de desejo é insuportável para o invejoso que lança seus impulsos carregados de ódio para a destruição da cena feliz. Trata-se de um sentimento primário, infantil.

“Ninguém pode substituir você como pai do seu filho”. 

Foi preciso que o avo do menino dissesse isso ao pai. Quando alguém precisa comunicar algo dessa ordem para um pai, é hora de nos perguntarmos o que está acontecendo com essa família, com esse pai. Uma vez estabelecido o vínculo, a identificação e o afeto nada poderá fazer desaparecer essa referência. Mesmo que a relação possa mais tarde ficar ruim ou mesmo se houver uma separação, as marcas deixadas por esses primeiros anos de vida serão permanentes. O pai sair de cena ou haver uma troca de crianças fatalmente seria sentido como abandono psíquico por parte das crianças. Impressiona que pais abandonem seus filhos. Impressiona que pais precisem ser informados quanto a isso.

Como pode o primeiro pai ‘oferecer muito dinheiro” com a proposta de ficar com os dois meninos? E o vínculo de afeto com o segundo pai? 

Mas esses pais existem e transmitem suas crueldades a seus filhos, prova disso é a frase do avô, “troque logo e nunca mais veja aquela família de novo. ” É o pragmatismo que substitui o afeto.

Outras frases dos personagens nos fazem pensar sobre o que é a paternidade e quais teorias ou saberes sustentam o pensamento deles. Alguns exemplos são: “Filho verdadeiro”, afinal o que é um filho verdadeiro? 

Sabemos que todos somos ou precisamos ser adotados. Não basta termos sido paridos, é preciso que mãe e pai nos adotem em seu desejo, em seu afeto. Então, se fomos adotados, todos somos verdadeiros. 

Outra frase: “Paternidade é assim mesmo. Mesmo vivendo longe o filho fica parecido com o pai. ” O embate entre Natureza e Cultura se atualiza aqui. 

Ainda outra frase: “É o sangue. ” Acionar o sangue para explicar as condutas humanas sempre foi um recurso que recalcou a dimensão simbólico, a transmissão pela linguagem. Seria preciso aprender com vários grupos indígenas que a sanguinidade pode ser construída e não dada.

Dissonante dessas lógicas é a frase do avô ao afirmar que “mesmo não sendo sanguíneos ficam parecidos com o tempo. ” Aqui sim temos a outra perspectiva de análise que leva em conta que o parentesco é construído.

Pais e Filhos (2013) | MUBI

Em certo momento do filme os dois casais e os filhos se reúnem para uma foto, essa que aparece aqui em cima. É bastante sugestivo tudo o que se vê nessa imagem, ela resume as diferenças entre os dois grupos. De um lado o casal sério, o sorriso parece ter fugido para algum lugar, proibido estar ali. De outro lado o sorriso está ali, ainda que contido, e revela uma leveza, quase uma fruição. 

De um lado as roupas monocromáticas, opacas, tendendo a uma discrição desapegada, quase triste e uma criança com roupa preta, de gola, um mini adulto. De outro lado as roupas cheias de cores e o descompromisso com os padrões sugerem liberdade, um misto de desleixo com estilo. A criança aqui usa camiseta e na estampa um bichinho, algo infantil, como se espera da roupa de uma criança.

De um lado a postura sóbria e formal, coluna ereta, pés juntos. De outro lado algo mais descontraído, uma relação com o corpo mais livre e despojada. 

Decidido o futuro das crianças, elas serão trocadas. A missão é fazê-las aceitar, enganá-las. Que ponto triste do enredo. 

Uma delas desenha um monstro no espelho. Muitas crianças expressam seu mundo interno no desenho, no brincar. Tentar organizar seu mundo brincando. Mas como organizar esse caos gerado pelos adultos?

Feita a troca, como ficam as pulsões? Como ficam os vínculos simbólicos e afetivos? Como ficam as relações sociais que foram cortadas de forma abrupta? Daqui em diante as crianças estão infelizes.

Surge a culpa. A mãe do primeiro casal se culpa por amar o filho e estar ‘traindo’ o outro. 

E é aqui que começam a acontecer os dramas e transformações nos personagens. 

Pais e Filhos - Movies on Google Play

O pai do primeiro casal se dará conta de seu lugar e de sua função. As fotografias tiradas pelo seu filho mostram uma imagem que ele não suporta na realidade, mostram que está aquém do que se espera de um pai. Ver-se sendo visto provoca uma mudança significativa. Outro sentido do ‘ser pai’ tem início aqui. Ele se dá conta de que ser pai é mais do quer ser provedor, mais que ter expectativas sobre o filho, mais do que garantir um futuro, ser pai é estar presente de forma significativa, junto à família, priorizando essas relações. 

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