“Vamos conversar primeiro”.
O convite para uma conversa pode ser grandioso quando estamos diante de um dilema, de um problema que parece insolúvel, quer internamente, quer na relação com outra ou outras pessoas. A palavra ‘primeiro’, na frase acima, expressa um tempo que antecipa um ato.
Quando se trata do suicídio, chegar primeiro e oferecer uma escuta e uma palavra podem ser a diferença entre a vida e a morte.
Há filmes que rendem um longo texto. Seja por conta de sua complexidade, quantidade de personagens, arco dramático do protagonista, detalhes históricos, profundidade subjetiva. Não é o caso do filme Mergulhando no Amor, da diretora Stelana Kliris.
Escolho não comentar o filme no todo e sim alguns fragmentos.
ALERTA DE SPOILER !
As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.
A sinopse pode ser dita assim: um cantor de rock em decadência compra uma casa à beira de um penhasco na Ilha de Chipre, para lá viver em suposto anonimato. Com o tempo ficamos sabendo que há muitos anos atrás ele teve um relacionamento com uma moradora da ilha, por isso a escolha deste local. O inusitado é que bem em frente à casa é o local escolhido pelos moradores locais para se jogarem lá de cima, o local do suicídio.
Nem de longe o filme questiona as causas que levam os moradores a tal prática. Tampouco é essa a proposta do filme que é declaradamente uma comédia romântica, superficial ao gosto dos que desejam apenas alguma diversão no streaming.
Mas, afinal, por que então comentar o filme aqui?
Alguns fragmentos justificam.
O novo morador é informado que aquele é um “lugar famoso” devido aos suicídios ali ocorridos. A expressão ‘lugar famoso’ quando associado ao suicídio nos faz pensar.
É sabido que a escolha do lugar para o suicídio ganha relevada importância. Exemplos são a Ponte Golden Gate, nos Estados Unidos, o bosque de Aokigahara, próximo ao Monte Fuji, no Japão, as Cataratas do Niágara também nos Estados Unidos, o metrô de Londres. Em algumas cidades o cenário pode ser uma ponte, uma árvore gigante, o viaduto, um prédio conhecido.
Buscar o lugar famoso para o ato derradeiro é muito significativo. Pode querer dizer que o suicida deseja algum reconhecimento, deseja que seu drama seja conhecido, deseja que seu sofrimento possa ser escutado mesmo após a morte. Note-se que nem sempre é a ideia da morte que está de todo presente no anto suicida, às vezes é o contrário, uma forma de fazer viver uma vida até ali sem sentido ou marcada por um grande e silencioso sofrimento.
O personagem do filme resolve construir uma cerca em frente ao precipício a fim de evitar que outras pessoas se joguem. Interessante! Lembro de uma cidade onde fiz uma pesquisa sobre o suicídio. Lá usava-se o enforcamento como método. Para tentar evitar, proibiram a venda de cordas em lojas. Só se vendiam cordas a quem levasse atestado de sanidade.
Atacar o método pelo qual as cometem o suicídio é uma forma recalcante de querer acabar com o problema sem ter que compreender suas causas.
Em outra cena do filme uma mãe se aproxima do precipício de onde o filho havia se jogado. O policial diz que ela não vai se jogar, ela só “está tentando entender”.
Ainda diz: “Nem todos querem pular. Alguns só querem se ver livres da tristeza ou do medo”. Alvarez, no livro O Deus Selvagem, escreve: “Acredito que exista toda uma classe de suicidas que põe fim à própria vida não para morrer, mas para escapar de uma confusão interna, para aclarar suas mentes”.
Ou seja, mesmo naqueles de fato se lançam para a morte, ainda assim, há uma esperança em seu ato, esperança de resolver alguma coisa. Da pior maneira de todas, acreditamos.
O mesmo Alvarez ainda escreve sobre o suicida, que “ele joga sua vida fora para poder, enfim, viver direito”.
Em outra cena, uma jovem se coloca diante do precipício. O cantor conversar com ela, diz que, independente do problema, daqui a algum tempo ele não fará mais sentido. É um bom argumento diante do imediatismo da solução desesperada do suicídio. Ela está grávida, imagina que seus pais não aceitarão. Ele a acolhe, conversa com os pais dela. O parto se realiza. À criança é dado o nome do cantor, por motivo óbvio.
Ao final a grande sacada do filme: a cerca é retirada e no seu lugar uma placa é colocada com os seguintes dizeres: VAMOS CONVERSAR PRIMEIRO. Abaixo destas palavras uma seta aponta para a casa onde mora o cantor.
Sim, o que resolve são as palavras. Elas têm o poder de fazer olhar melhor uma situação que parece sem solução. De deslocar o desespero de um sofrimento por uma aposta num futuro diferente.