Precisamos de regras

O Senhor das Moscas - Filme 1990 - Cinema e Psicanálise
“Precisamos de regras.”

Essa é a conclusão a que chega um grupo de crianças e adolescentes, sobreviventes de acidente e que estão perdidos numa ilha. 

Baseado no livro de William Golding, o filme o Senhor das Moscas retrata as intrincadas redes subjetivas na formação de grupos. 

O livro é escrito em 1952 e em 1983 o autor recebe o Nobel de Literatura pelo conjunto da obra.

No filme, logo após a chegada à ilha, tem início a luta pela sobrevivência, a formação de grupos e divisão de tarefas. Mas o que poderia ser um bem arranjado sistema logo se torna motivo para surgimento de divisões e agressividades.

A ideia inicial de liberdade do mundo dos adultos logo foi substituída por condutas cruéis, com consequências trágicas que revelam os modos de agir e pensar dos grupos e dos sujeitos quando inseridos neles. Com Freud, sabemos que uma vez estando num grupo um sujeito se apaga e adere a uma espécie de mentalidade do grupo, o que o faz agir e pensar não mais a partir de sua individualidade mas age, pensa e sente de acordo com o grupo, o que em geral difere e se opõe ao seu pensamento individual.

As referências para um sujeito e para um grupo são dadas pela presença dos pais e pelas instituições (o Estado), ambas constituindo sujeitos morais, inseridos na ordem da cultura a partir dos pactos sociais que tornam a vida social possível. 

A ausência destas referências baseadas na observância das regras sociais, tem sido objeto de estudo há muito tempo. No mundo contemporâneo, marcado pelos declínios das referências tradicionais, estamos acompanhando o florescer de novos modos agressivos do estar em sociedade e na relação com o outro. 

Farei referência às obras cinematográficas e aqui vale lembrar que foram produzidos dois filmes com o mesmo título, contando a mesma história. A primeira versão em preto e branco de 1963, dirigido por Peter Brook, e a segunda versão em cores de 1990, dirigido por Harry Hook. Ambos excepcionais.

Essas crianças, na ficção do livro e filme, são britânicas, estariam num avião, fugindo de um suposto ataque nuclear no período da Guerra. Fazem parte de um coral, mostrando que elas estão inseridas numa organização que envolve ordem, respeito, hierarquia.

Entre as primeiras tarefas a que se propõem está o acender de uma fogueira, que a princípio se mostra desastrosa, colocam fogo em tudo ao redor. Mas a primeira divergência é: acender a fogueira para serem vistos ou caçar algo para comer?

Logo alguns roubos no interior do grupo fazem com que surja a necessidade de punições. Uma das primeiras questões para o estabelecimento de um grupo social é a criação de tabus e as punições a ele associados. Precisam haver as regras e punições quando são contrariadas.

O medo surge na sequência, a condição de desamparo, o sobrenatural é forjado para dar algum nome a essa angústia.

Chamamos civilização a possibilidade de vida em grupo, permanência dos laços sociais, permanência das instituições, respeitos, família, e para que ela seja possível é preciso que ela consiga conter as tendências agressivas individuais às custas da renúncia de uma parte de suas satisfações mais primárias (ódios, agressividades, satisfação sexual ilimitada, apropriação de bens alheios, etc). Sem essa renúncia a vida em grupo não seria possível e teríamos a barbárie ou a extinção dos sujeitos.

No grupo retratado no filme vemos que a ausência dos ‘adultos’ conduz o grupo a recriar outros modos de funcionamento.

Os grupos, quando se formam, adquirem várias características muito próprias e que se diferenciam de outros grupos. Quando sujeitos estão em grupo, a massa dos interesses comuns cria uma “personalidade” a este grupo, personalidade essa que em geral difere muito daquilo que cada sujeito pensa isoladamente. E também difere em grande escala de outro(s) grupo(s). 

Freud em seu texto Psicologia das Massas e Análise do Ego, analisando a obra de Gustav Le Bom (também chamada Psicologia das Massas) escreveu e em parte transcreveu que essa “mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento”.

O grupo confere aos sujeitos um anonimato que os protege, bem como um poder imenso, ambas as forças (anonimato e poder da massa) facilitando a liberação de emoções e descargas afetivas que em estado de isolamento, certamente ficariam represadas. O grupo confere ao indivíduo uma oportunidade de expressão ou de descarga que outros sujeitos encontram em formas diferentes de expressão: trabalho, realização artística, amor, nos sintomas psíquicos. É, portanto, inebriante a experiência da diluição do sujeito no grupo e um bem por ele prezado. 

Sem rivalidade não há grupo.

O amor ao grupo a qual se pertence é muito grande, o sujeito identifica-se a ele, tem uma sensação de pertencimento, um local de afirmação de si, de prazerosas descargas afetivas. Tamanho amor justifica o também grande ódio ao grupo rival, aquilo que se oponha. Amor e ódio estão juntos no reino dos fenômenos de grupo. A expressão desse ódio será graduada, desde um xingamento contra o rival, até as cenas de agressão. No filme vemos essas intensidades nos diferentes personagens. 

Os grupos são impulsivos e movidos por uma força que transcende os indivíduos, por isso, podem ser facilmente provocados e o resultado sempre é inesperado, além do que o próprio grupo não é capaz de avaliação crítica quando está executando um ato movido por essa força.

Se o líder inflama uma palavra de ódio ou provocativa, o grupo vai reagir emotivamente a esse comando. A razão não é suficiente para conter a força de um grupo. Os líderes em geral são dotados de carisma ou prestígio (uma característica subjetiva, difícil de explicar e que parece revelar um “poder misterioso e irresistível”). O líder também é movido por uma intensa demonstração de credulidade nas ideias que defendem, por isso, quanto mais agressivo o líder, mais agressivo o grupo, já que é com suas ideias e suas emoções que conduz a massa. 

Mas é importante que se diga que, da mesma forma que os grupos expressam facetas horrendas da constituição humana, também eles são capazes das mais surpreendentes realizações em nome da arte, da generosidade, da humanidade, da solidariedade, da construção de obras, da realização de eventos, da ajuda em momentos de crises, das equipes de trabalho, enfim… de alguma forma devemos tudo quanto somos ao lado bom dos grupos e suas realizações.

O filme mostra como a divisão do grupo levará à constituição de dois grupos rivais, um em oposição ao outro. Jack e Ralph são os líderes dos grupos. 

Vale notar as diferenças entre eles. Enquanto Ralph representa a democracia, uma vez que ele é o líder por escolha da maioria e tenta tomar as decisões que sejam melhores para todos, Jack pode representar as formas autoritárias e totalitárias de poder, sendo cruel e tentando controlar a todos na ilha de forma despótica com a imposição da violência. Veremos que mortes ocorrerão em nome disso, como por exempo a morte de Simon, um dos principais personagens do filme. Simon representa a sensibilidade, a fé, a religião, a mística, o olhar além, afinal ele tem visões reveladoras. Alguns até iriam propor que ele sofria de esquizofrenia, mas prefiro não adentar nesse tema aqui. Representa a espiritualidade. O linchamento de Simon revela o caráter ‘irracional’ dos grupos quando animados por um ódio ou por um comando vindo do líder. Simon é quem descobre que não existe um monstro e, portanto, não precisa haver o medo. Mas os líderes tiranos precisam do medo para se manterem no poder. Os líderes sabem que sem o medo seu porestígio acaba. Jack não aceita que o monstro deixe de existir, precisa manipular o medo. E Simon, aquele que revela uma verdade, acaba sendo morto. Isso me faz a fala do escritor de Moçambique, Mia Couto, “há quem tenha medo que o medo acabe. ”

Os personagens do filme são bem interessantes de serem analisados.O Porquinho pode representar a ciência, a razão, a inteligência. Ele age, pensa e fala de modo lógico e é impopular, mas necessário. Por isso ele será outro personagem que irá morrer no filme. Os grupos não querem a razão, não querem a verdade. Querem ser guiados por forças emotivas e não por racionais.

O “Bicho” representa a propaganda, causando medo, por um inimigo nunca visto e usada para unir os meninos ao redor de Jack. 

O filme é uma analogia da disputa entre a democracia onde a voz é dada a todos ainda que resulte em complexas e tardias tomads de decisões e as ditaduras ou governos totalitários cuja ideologia é a punição extrema e o medo.

Mas o filme também fala da divisão interna e da subjetividade tanto dos grupos quando dos sujeitos. Ralph bem se compara à consciência, seus esforços vão no sentido de manter a coerência das decisões, das palavras, dos modos de agir. Porquinho é a razão, a inteligência, o conhecimento. Jack representa os sentimentos mais primários, internos, profundos, ditos primitivos e agressivos. Simon, é aquele que contempla, é intuitivo, parece habitar dois mundos. 

Há ainda outros símbolos interessantes como os óculos que servem não só para ver mas para fazer o fogo e a concha como representante da ordem, das regras, do direito à fala. Interessante notar que é Jack quem a abandona. 

No que diz respeito à organização dos grupos, Ralph bem sinalzia o governo, a luta pela manutenção da ordem e o cumprimento ds regras. Ao passo que Jack tem na barbárie sua forma de ação, de fazer valer uma lógica calcada na emoção de descarga rápida, violenta.

Obra atual, O Senhor das moscas, no convida a refletri o momento presente da humanidde, polarizada, causadora de desastrosos encontros e numa ameça angustiante de conflitos vindos de regiões muito profundas em nós, la onde as palavras não alcançam mas que se manifestam nos sonhos e nos atos humansos isolados e de grupos. 
Somente as palavras, com seu poder infinito de traduzir o indizível em figuras possíveis de pensar, para lançar luzes e alguma lucidez nessa ameaça tão feroz que habita…o íntimo de nós mesmo e se sente livre para agir quando estasmos em grupo. Quem pode nos salvar? A arte? A Filosofia? A Psicanálise? Acima de todas, a Poesia e sua capacidade profunda de nos alcançar com a metáforas.

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