“Eu não acredito no casamento.” “Pare de sonhar Justine.”
Essas duas frases são fragmentos extraídos de cenas de um filme. Pronunciadas pela mãe da noiva, no dia do casamento da filha. Amarga, seca, rancorosa, com essas palavras ela opera um corte no imaginário do ritual do casamento.
Pelas lentes do polêmico (e genial) diretor Lars Von Trier, o filme Melancholia pode ser lido como uma metáfora das relações humanas no mundo contemporâneo.
Um casamento. Convidados. Uma família em crise e o planeta Melancholia em rota de colisão com a Terra. A catástrofe iminente nos leva a refletir sobre quem somos no Universo e permite repensar as crenças e o que nos sustenta na vida. A película toda é uma bela aula encenada com profundidade sobre a Depressão.
Costumo dizer que um filme é um Sujeito. E como tal tem ele tem um Inconsciente, o Diretor, aquele que nem sempre aparece e apesar disso, comanda a cena.
Lars Von Trier usa o cinema para curar-se de seu sofrimento. Nos calabouços desse filme está o contexto: Ele explica: “A vida toda sofri de ansiedade, e minha mãe também. Não que eu culpe minha mãe por tê-la transmitido a mim – e essa é uma das poucas coisas pelas quais não a culpo. Mas a depressão veio com o anúncio já célebre que ela fez no leito de morte: dois dias antes de morrer, cheia de tubos, ela me revelou que meu pai não era meu pai, e que eu era filho de um homem com quem ela tivera um longo caso. Foi a última vez em que pudemos conversar. Logo a seguir, ela já não podia mais se comunicar. Uma mentira de uma vida inteira, e nenhuma chance de sequer discuti-la, ou de brigar por causa dela. A depressão se instalou e nunca mais me abandonou verdadeiramente.”
Um corte, seco, a depressão se instala

Tal qual no filme, uma mãe que realiza um corte, suspende uma certeza, projeta o filho na dúvida de seus primórdios, desestrutura o mito de origem. O filme Melancholia (2011) é dos três que compõe a chamada trilogia da Depressão. Os ouros dois são: Anticristo (2009) e Ninfomaníaca (2013).
A clínica da Psicanálise escuta e estuda os complexos fenômenos da Depressão e da Melancolia que afetam um sujeito. Quem for estudar mais perceberá que elas são diferentes. Freud em seu clássico texto chamado Luto e Melancolia chama atenção para o fato de a depressão ser uma reação a uma perda.
Escreveu ele: “Melancolia também é uma reação à perda de um objeto amado, mas uma perda de natureza mais ideal…não podemos, porém, ver claramente o que foi perdido, sendo de todo razoável supor que também o paciente não pode conscientemente perceber o que perdeu.”
No filme, sofremos com Justine em sua trajetória rumo à aceitação complacente do fim do mundo, representado pelo choque de Melancholia com a Terra. Trata-se de uma experiência cinematográfica que mexe com os sentidos, uma experiência visual, acústica, sensível… e que, no limite, nos propõe a cruel notícia: A Depressão é o fim do Mundo. Sim, essa é a experiência dos que levam o sofrimento até perto dos limites, a menos que possa ser tratada, ser escutada.
Ainda Freud nos alerta que “na melancolia, as ocasiões que dão margem à doença vão, em sua maior parte, além do caso nítido de uma perda por morte, incluindo as situações de desconsideração, desprezo ou desapontamento…”
Os sofrimentos causados pelos modos contemporâneos

No mundo em que vivemos, constatamos o declínio da fidelidade das relações, o incentivo à individualidade, o consumo exagerado acima dos valores, por isso não espanta que o adoecimento psíquico seja tão comum e com ele uma lista enorme de patologias que não param de crescer.
Sempre que apresento e faço debates sobre esse filme em eventos ou cursos, me surpreendo ainda com outras descobertas. O mesmo acontece quando escuto pacientes depressivos, cada caso o Inconsciente se manifesta de modo tão original, profundo, complexo e belo.
Mas é a personagem Justine, no auge de sua patologia e próximo ao momento da destruição da Terra que profere a mais cruel sentença: “A Terra é má e ninguém vai sentir falta dela.” Esvaziada do imaginário, da dimensão de fantasia tão necessária à vida, ela se entrega ao fim, não sem uma feição de prazer, de gozo, de uma deliciosa e perigosa espera.