Harry Goldfarb

Harry Goldfarb - Réquiem para um Sonho - filme drama 2000 - Cinema e Psicanálise

Harry: “Não temos nada a perder.”

Não ter nada a perder é a condição mais miserável a que pode chegar um sujeito. É a despossessão levada ao paroxismo. Ao pronunciá-la, o personagem do filme Réquiem para um Sonho, nos informa sua condição de vida.

Comecemos pelo título. Um “réquiem” é classicamente como uma “missa para os defuntos” (do latim: missa pro defunctis). É um ritual. Tem uma liturgia própria. Um canto. Mas aqui o réquiem é para um sonho. Sonho que, no senso comum, é entendido como aspiração, vontade, desejo. Aqui, o sonho não se realizou! 

Uma televisão é empurrada pelas ruas, uma cena que ultrapassa o ridículo, tal qual é a falta de pudor consigo próprio, tão marcante nos sujeitos que de tudo fazem para a obtenção de seu objeto de prazer (ou de gozo, o que não é a mesma coisa, diga-se).

A televisão, objeto de prazer da mãe, é vendida pelo filho. Em geral essas vendas o são por preço muito inferior ao valor do objeto, isso porque a urgência de comprar a droga é tão grande que não há tempo para esperar e vender por um preço mais alto. Quando chega a esse ponto, já não temos um sujeito pensante capaz de fazer uso de sua racionalidade para pôr em questão o absurdo que ele está fazendo. A droga, ou melhor, toda a racionalidade do uso e do ciclo da droga está no comando. O centro da subjetividade do sujeito é ocupado pelo imperativo supremo, atender uma voz que ordena gozar.

No filme, a televisão sendo levada pelas ruas em um suporte com rodinhas é a marca da falta de pudor, de vergonha (daquela que se espera dos sujeitos atravessados pela castração e pela dimensão ética). Marca da degradação a que são submetidos os sujeitos quando diminuídos à condição de elo na ampla corrente de circulação econômica das drogas. Cadeia que começa no plantio, passa pela colheita, refino, distribuição, tráfico, aliciamento, atravessadores, venda, uso, saber usar, onde usar, com quem usar, dependência, empobrecimento, dívida, cobrança e morte (seja pelo uso da droga, seja pela falta de pagamento). Essa complexa teia, altamente organizada, simbólica e subjetiva, captura o sujeito, assume o controle, ordena o gozo, produz sentido, rouba a capacidade crítica, escraviza e mata. Mas, por ser altamente provocadora de um gozo, a ela o sujeito se entrega sem limites, sem crítica.

É interessante o que o antropólogo Eduardo Vargas Viana escreve sobre isso. “Esses acontecimentos, o “barato”, a “viagem”, a “onda”, não vêm de graça. Eles precisam ser meticulosamente preparados, inclusive material e tecnicamente. Entre outras coisas, e do ponto de vista do usuário, é necessário “descolar” a droga, ou seja, consegui-la, o que já supõe a existência de cadeias de produção e de redes de distribuição, bem como a relativa habilidade dos usuários em circular por elas, ao menos até certo(s) ponto(s). “Descolada” a droga, é necessário arranjar a “quebrada”, vale dizer, o local e/ou a situação propícia ao consumo. É necessário ainda saber preparar e usar a droga, isto é, tornar a substância apta ao consumo: “apertar o baseado”, “esticar a carreira e preparar o canudo”, “aprontar o chá”, “diluir e encher a seringa”, em suma, fazer as separações ou as misturas indispensáveis e preparar os dispositivos materiais imprescindíveis à administração da substância em tela; assim como dispor dos conhecimentos e meios técnicos necessários ao uso, tais como saber de que modo administrar a droga – tragar sem tossir, inalar sem espirrar, ingerir sem vomitar ou acertar a veia na hora de injetar –, e quais são as doses necessárias, sem as quais não há “onda”, e suficientes, além das quais a “onda” desanda, dependendo do caso na forma de overdose. Num certo sentido, é como os medicamentos.”

A mãe de Harry, Sara, vai recomprar a televisão do receptador, ela se torna mais um elo dessa cadeia de circulação da droga. Essa televisão já virou droga várias vezes. 

Os amigos Harry e Tyron conversam no bar: “Poderíamos conseguir mais desse bagulho, adulterar e vender. Poderíamos duplicar nosso dinheiro facilmente. Depois a gente compra mais e vende outra vez”. A visão do tráfico como negócio, como empresa, reforça a ideia do quanto essa circulação da droga atua como produtora de identidade e promessa de sustento. 

Harry percebe o vício da mãe, sabe do que se trata, ambos são viciados, estão submetidos à mesma lógica do gozo. 

Os personagens do filme estão às voltas com o verso conseguir.

Conseguir: o afeto do filho, emagrecer, caber no vestido, aparecer na televisão, as drogas, ganhar dinheiro, sexo. Objetos que passam a se tornar o centro da vida dos sujeitos.

Marion, a namorada de Harry, sofre com a abstinência. Remédios e drogas estarão em seu caminho. Sem condições de levar um projeto de vida adiante, vê-se sem recursos. Em estado de vulnerabilidade psíquica frente à dependência, a droga passa a comandar suas vontades. Se prostitui para conseguir a droga, assim revelando que nessa lógica o corpo pode assumir uma dimensão de troca, de uma troca abjeta. No mundo das drogas, o gozo cobra um preço ao corpo que o deixa por demais próximo ao risco e à morte. O corpo paga o preço quando nele são introjetadas as substâncias, quando é exposto aos riscos para a obtenção das drogas, quando é prostituído, pelas marcas deixadas pelos instrumentos de introdução da droga, pelas doenças sem cura adquiridas pelo uso. Como escreve Néstor Braunstein, no livro O Gozo, “…nada se adquire a não ser pagando”.

Drogas e prostituição compreendem um ciclo complexo. Desesperado pela droga, recorre à prostituição. A vergonha e humilhação geradas por essa conduta requerem mais droga para amenizar seus efeitos. O ciclo está formado. Sexo e drogas definem dois modos de satisfação que ficam amarrados.

O mesmo vale para a associação entre as drogas e o roubo. Nestes personagens e na vida, o consumo de droga prostitui as pessoas e as colocam na marginalidade criminosa.

As drogas proporcionam ao sujeito um gozo imediato, uma diluição de si, de suas angústias, da realidade, do vazio. Não por acaso, passa a ocupar um lugar de tamanho interesse e centralidade da vida de um sujeito.

Sara, Harry, Tyron, Marion, todos às voltas com suas drogas. Drogas, remédios, televisão, a lógica do consumo está de todo presente aqui. O psicanalista  Octávio de Souza revela a correlação do consumo das drogas com o consumo dos objetos na sociedade capitalista. Escreveu ele que “…o uso das drogas é visto não tanto como um sintoma, mas como uma radiografia da sociedade de consumo. Acredita-se assim que através da patologia do uso transgressivo da droga pode-se entrever as reais características de fundo da normalidade do comportamento consumista: ausência de projeto coletivo ou pessoal, ilusão, vazio existencial. Igualados, os objetos de consumo e as drogas revelam-se os veículos da promessa de felicidade imediata que substitui os ideais abandonados pela sociedade contemporânea. Tal análise tem como referência teórica, entre outras, o processo discernido por Freud em sua análise da sugestão hipnótica e da psicologia das massas, no qual o ideal do ego é substituído por um objeto externo: as drogas e os objetos de consumo como reificações dos ideais abandonados.“

Harry, diante dos riscos de uma nova estratégia de conseguir dinheiro para as drogas, profere a mais terrível frase do filme: “Não temos nada a perder”. Não ter nada a perder é o grau mais extremo de desvalorização de si. Não ter nada a perder é já ter perdido tudo. Em Harry, ela é literal. Sua vida já não tem a dignidade de ser preservada, protegida, pode ser colocada ao risco. Pobre Harry. Pobres Harrys da sociedade de consumo. Tal qual um jogador compulsivo que acredita poder recuperar tudo o que perdeu ao se lançar numa nova e mais arriscada aposta, o que motiva é o risco, a esperança, a emoção, o desafio. 

Ainda nos diz Octavio de Souza que “…há de se considerar também que as drogas, mais do que objetos de gozo a renunciar, muitas vezes são fontes de qualidades experienciais que o sujeito necessita para manter a esperança de constituir para si uma base existencial a partir da qual possa, num momento posterior, vir a desejar.”

Harry e Tyron acreditam que as drogas lhes trarão a possibilidade de desejar e realizar os sonhos. Harry imagina Marion num píer, linda, ele correndo ao seu encontro. Serão felizes. Ele quer vir a desejar, mas não pode. Suas histórias de vida são marcadas pelo encontro sempre repetido com um objeto que se mostra insuficiente. Néstor Braunstein escreveu que “… a história de cada um é resultado dos modos de fracasso dos encontros com o gozo e do voltar a se lançar atrás dele”.

Harry, Marion e Tyron precisam conseguir seu objeto de satisfação de forma imediata. O objeto de gozo não o objeto de desejo. A privação desse objeto os conduz à fissura. A abstinência é insuportável, é o encontro com o furo, real. Diante desse quadro, qualquer preço, qualquer sacrifício será feito. Harry perde o braço, Marion se prostitui, Tyron é preso. O que eles desejam ao produzir em si com tamanha devoção à droga? Sobre Sara, escrevi sua trajetória em outro texto aqui na Coluna.

O objeto do filme é a droga, nas suas mais variadas versões: heroína, cocaína, remédios, programas de televisão. Os personagens se referem às drogas, especialmente as ilícitas, com as seguintes palavras para qualificá-las: “bagulho bom”; “droga pura”; “droga da boa”; “carregamento do melhor”; “pura”; “da pura”; “droga maravilhosa”; “da boa”. Esses adjetivos mostram que, quando se trata da busca pelo objeto da pulsão, esse é revestido das melhores expectativas, esperado com entusiasmo; é depositado sobre ele toda esperança mágica de acabar com a angústia. É o sonho do encontro com o objeto perfeito, idealizado. Apenas encontrável na paixão, como diz Freud, mas com o adendo de que nunca estamos tão doentes quanto no estado de paixão.

No início, Harry e Marion faziam planos para ficarem juntos, não queriam se separar. Marion sequer queria trabalhar para não ficar longe de Harry. Passado algum tempo, eles já não se relacionam mais. A droga assumiu o lugar do gozo fálico. Braunstein nos adverte de que “a droga não é um objeto sexual substitutivo, carece de valor fálico; é, pelo contrário, um substituto da sexualidade mesma, um modo de afastar-se das coações relacionais impostas pelo falo. É assim que a droga se assemelha ao autoerotismo da proibição originária: o sujeito administra em si mesmo uma substância que o conecta diretamente com um gozo que não passa pelo filtro da aquiescência ou pelo forçamento do corpo de outro; consegue-se deste modo a substituição da sexualidade.”

No final do filme, os personagens estão em posição fetal. É um clichê, mas significativo. Afinal, o que se pretende sempre é voltar ao sonho do paraíso perdido, ao útero materno, à morte, a um tempo em que ‘O’ objeto absoluto teria estado presente. Revela também o retorno à indefensa infantil.

E, quando todos esperavam a chegada da primavera, já que o filme é divido em 3 capítulos, Verão, Outono e Inverno, eis que o filme acaba! Sem primavera! E não poderia ser diferente. Darren Aronofsky quer nos dizer que no mundo das drogas não há primavera, não há dias floridos… A primavera seria o completar de um ciclo. Seria o final feliz, a estação da alegria, a redenção dos personagens. Mas não há primavera, o Real interrompe a chegada da estação feliz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *