“A certeza é a inimiga mortal da tolerância. ”
Onde reinam as certezas falta espaço para a dúvida. O reino das certezas leva ao fundamentalismo, à rejeição do outro e suas crenças e valores. A certeza é deletéria à dialética, à troca, ao reconhecimento das diferenças. Irmã da arrogância, da prepotência e da soberba, a certeza marginaliza os que tem menos poder de argumentação, aos excluídos das letras. Quando se associam certeza e poder, seja no plano político, religioso ou econômico, não faltam sintomas sociais causadores de sofrimentos e catástrofes.
A frase acima é proferida pelo cardeal decano encarregado de presidir o conclave que irá eleger o novo papa. Ele deseja que o próximo papa tenha dúvidas em vez de certezas.
Morre um papa. Imediatamente é acionado um grande ritual para eleger o sucessor. Cardeais do mundo todo se reúnem no Vaticano para o escrutínio. Ao final uma fumaça branca anuncia que o novo papa foi eleito. Esse rito é conhecido.
O que o filme Conclave, baseado no livro de mesmo nome, apresenta são os acontecimentos durante esse processo, no tempo de isolamento até que o novo papa seja anunciado. O mistério do que ali acontece aguça a curiosidade do mundo. O imaginário cria a ideia de que ali reina um clima espiritual marcado pela pureza, pelo sagrado, pelo divino. O real nos informa um cenário marcado por forte caráter de disputa política, ideológica, de gênero, de poder. Um deles afirma “sim, isso é uma guerra. ”
Até aqui parecia estarmos diante de um filme sobre a religião católica e o processo de eleição de seu representante supremo. Começamos a enxergar outras camadas.
ALERTA DE SPOILER !
As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.
Veja aqui onde assistir o filme Conclave, ou aqui para saber mais sobre o filme.
Análise psicanalítica do filme “Conclave”
E concluímos que o filme trata da condição humana, de humanos cuja imagem idealizada de perfeição e pureza vai revelando suas contradições, imperfeições, erros, vícios, tudo o que pode definir um humano constituído pelos mais arcaicos sentimentos como o desejo de poder, inveja e a capacidade de subjugar o outro. E mais, que todos temos uma história, um passado onde podem ter acontecido fatos que entram em choque com a imagem que pretendemos transmitir no presente. É um filme sobre fantasmas e os fantasmas são os crimes e as pessoas do passado que retornam para cobrar as dívidas. É o caso do cardeal que estava liderando as eleições, mas vê seus planos irem por terra quando uma freira com a qual teve um filho no passado retorna durante o conclave e o retira da disputa. Eleger um papa que no passado teve um caso e engravidou uma freira? Impossível.
Esta freira está dentro dos “muros” do conclave por arranjo de outro cardeal, que usa desse expediente escuso para arruinar a eleição do favorito, e consegue. Ele mesmo também almeja ganhar essa eleição.
Ele é desmascarado nessa artimanha e acaba também vendo arruinada sua pretensão de ser tornar o próximo papa.
Agora são dois favoritos fora do páreo. Duas figuras idealizadas cujas ações destruíram sua imagem no presente.

Há um decano no filme, o personagem principal, responsável por presidir ou administrar o processo do conclave. É um personagem “do bem”. E ele quer a verdade, luta por ela. Ele também quer ser justo e para tanto, sua humanidade falará mais alto. E não são poucos os atos que ele comete dotados de alguma ilegalidade. Por exemplo: ele subverte a regra do isolamento e ordena que se investigue um fato lá fora, fato esse relacionado à eleição. Ele também revela um segredo sagrado da confissão, segredo esse que está relacionado ao passado de um dos candidatos ao papado. Ele quebra o lacre que isola o quarto onde vivia o antigo papa falecido à busca de informações, e as encontra!
As Mulheres no Conclave
O mundo católico dá pouco lugar às mulheres na sua complexa hierarquia. A presença feminina no filme é discreta, minimizada na presença das freiras que cuidam da limpeza e refeição do ambiente fechado do conclave.

Mas há alguns momentos que subvertem esse padrão e as mulheres passam a ter lugar definitivo nesse ambiente tão marcadamente masculino.
O primeiro momento, aquele em que a freira que teve um relacionamento sexual com um cardeal e foi silenciada no passado se manifesta durante o conclave. Assustada, tem uma crise ao ver o cardeal à mesa, derruba a bandeja de comida. É o suficiente para despertar a atenção e muda o rumo do conclave, seu abusador foi punido, está excluído.
O segundo momento quando a madre superiora que chefia a organização da comida e limpeza dos ambientes do conclave, rompe um silêncio e diz: “Embora nós, as irmãs, devamos ser consideradas invisíveis, Deus, entretanto, nos deu visão e ouvidos. ” E denuncia que foi um dos cardeais que manipulou para que a freira que teve um filho com o cardeal, estivesse ali no conclave. O cardeal manipulador tinha a intenção de tirar seu concorrente do páreo.
O terceiro momento é quando da revelação de que o papa agora eleito tem um corpo biológico com útero e ovários. Antes de morrer, o papa anterior ficou sabendo sobre essa condição e o nomeou secretamente como cardeal, dando o direito de participar do conclave. Ele vencerá a eleição e seu segredo só será revelado após já ter sido eleito papa. A subversão aqui é total.
Mas o dado mais curioso e interessante do filme é que vamos nos dando conta de que quem rege o roteiro do filme, da trama, dos passos, dos acontecimentos, é o papa que morreu. Um morto que dirige as cenas. Ele sequer esteve vivo em cena no filme. Mas a trama toda do tecido do filme se passa a partir dos lances que ele anteviu, das jogadas que ele fez em vida e das jogadas programadas para acontecer depois que ele já estivesse morto. Nada mais vivo do que um morto! A noção de Sujeito em Psicanálise dá conta de explicar: um sujeito é efeito da linguagem e das tramas discursivas a que dá vazão.
Nesse sentido, o filme todo pode ser entendido com uma bela metáfora para expressar os (des)caminhos pelos quais a linguagem faz com os humanos um jogo interessante.
Como em muitos jogos, os de cartas em especial, é o morto quem comenda a ação, ele pode ser o objetivo, pode ser um dos jogadores, pode ser aquele que não aparece, pode ser aquele que precisa ser descoberto. O morto jogo efetivamente. No filme não é diferente. E podemos ver seus movimentos.
Sabendo que iria morrer, dá início ao desejo de eleger seu sucessor. Conhecedor dos possíveis candidatos, trama para afastar do trono aqueles cujas vidas não são condizentes com o que se espera daquele momento histórico. Um por ter um passado de abuso sexual, outro por ser contra o avanço das mulheres na Igreja, outro por ser retrógrado, outro por preconceito de gênero.
Ele nomeia cardeal um padre mexicano que vivia em Cabul, pouco conhecido, e que tempos antes havia confidenciado ao próprio para que possuía ovários e útero e teria assumido a forma masculina.

Na última audiência antes de morrer, o papa conversa com um cardeal que é forte candidato à substituição e lhe retira o título de cardeal. Como a conversa foi só entre os dois, essa destituição poderia não ser tornada pública, por isso o papa revela a um bispo o teor dessa última audiência. O bispo revela esse conteúdo ao decano que preside o conclave, o que dá início a uma investigação.
O papa também quer retirar o cardeal que teve um filho com a freira da disputa, para isso pede ao cardeal acima que encontre a freira e a traga ao conclave. Num mesmo golpe, o papa retira os dois cardeais da eleição. Um por ter abusado de uma freira e o outro por estar usando dinheiro da igreja para negociar votos com outros cardeais. Nos aposentos do papa estavam essas provas de desvios de dinheiro, provas essas encontradas pelo decano.
O morto que joga e joga bem
A linguagem faz de todos os personagens seres submissos às tramas das palavras. Cada qual envolto em um segredo, e num enredo, conversas que incitam à busca da verdade. Frases que mudam o modo de pensar dos personagens. Segredos que, revelados, mudam drasticamente os destinos. No fim, o filme trata daquilo que os mitos gregos há milênios já nos revelavam: a frágil condição humana diante do destino, das forças da linguagem, da falibilidade humana.
Em contraste com a força e suntuosidade das construções do Vaticano, suas galerias, suas colunas imensas, estão os sujeitos, seus dramas, suas contradições, seus desejos mais arcaicos, seus medos.

Há um poderoso discurso no filme sobre certeza e dúvida. A certeza é a causa da nossa intolerância, diz o decano, personagem principal do filme. Que erre, que peça perdão e siga adiante, esse é seu desejo para o espírito do novo papa.
Quem não aceita sua condição de errante vive num mundo de certeza, é prepotente e intolerante, cruel agressor com quem é diferente.
Cada personagem do filme esconde um segredo. Todo segredo é uma decisão. O papa eleito tomou uma decisão de não fazer uma cirurgia de histerectomia, mas conviver com esse segredo durante muito tempo, revelando ao papa sua condição intersexo. E é justamente esse cardeal que, por seu discurso pacificador, de amor, acaba sendo eleito o novo papa.
Teria sido esse o desejo do papa morto? Afinal ele lhe concede o título de cardeal. E retira do caminho os candidatos que pareciam os preferidos.
O filme termina com uma tartaruga. Em rápida pesquisa muitos símbolos são associados a esse animal: a paciência, a sabedoria, a longevidade, o lento avançar, o feminino. Mas é tentador também pensar a tartaruga e sua armadura, o casco que a protege e ao mesmo tempo esconde sua fragilidade. Tal qual um cardeal ou mesmo o Vaticano com toda a robustez da instituição e os paramentos (vestes) dos seus membros, a comparação com a tartaruga e o filme nos permitem perceber que ali também há muitas contradições e fraquezas, como é própria à constituição dos seres falantes.
Ficha Técnica: Filme Conclave (2024)
Título original: Conclave
Ano de Produção: 2024
Diretor: Edward Berger
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, Carlos Diehz, Isabella Rossellini,
Temas abordados: Certeza. Religião. Humanidade. Ideal.