“Ele não saía do quarto”
A vida por certo não está confinada ao quarto. Existe a rua, o parque, a cachoeira, a casa dos amigos, dos parentes, a igreja, a sala. Ficar no quarto por tempo demasiado pode até criar nos pais a falsa ilusão de que ali os filhos estão protegidos. Não estão. O quanto não é um lugar seguro desde que os computadores e celulares invadiram esse ambiente e com eles as redes sócias que capturam adolescentes por seus labirintos misteriosos.
A frase acima é dita por uma mãe, meses após seu filho adolescente matar a facadas uma colega de escola. Esse é o tema da Série Adolescência que vamos analisar.
ALERTA DE SPOILER !
As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.
Clique aqui para assistir a minisérie “Adolescência” antes de continuar, ou aqui para saber mais sobre a série.
Análise da minisérie “Adolescência” (2025)
Às 06 da manhã a polícia retira de sua casa um adolescente de 13 anos, ele é acusado de homicídio. Assim somos inseridos no drama.
Adolescência é tempo de questionamentos, encruzilhadas, temores, angústias e também um tempo de transformação muito potente onde a identidade é colocada à prova e o futuro gera expectativas enormes.
Sabemos, desde Freud, que a adolescência propõe ao sujeito a tarefa de desligar-se dos pais e conquistar um lugar no mundo, trabalho exaustivo, complexo e por vezes, perigoso. Envolve lutos, renúncias e fragmentações. Luto dos pais idealizados, dos objetos de interesse. Construir uma identidade psíquica e social é uma urgência.
A passagem pela adolescência sempre é conflitiva e, por essa razão, muitas vezes patologias podem acontecer e não serem diagnosticadas. Não são poucos os autores que referem as dificuldades contemporâneas dessa passagem pela adolescência, incrementadas pelos efeitos traumáticos das experiências de violência na escola e especialmente nas redes sociais. A vulnerabilidade é uma marca constante.
O quanto sabemos sobre a adolescência?
Jamie está preso, nega ter feito qualquer coisa errada. A presença da família na delegacia revela o esperado: eles não sabem de nada. Aqui somos lembrados do que já sabemos, a ignorância dos pais quanto à vida dos adolescentes é um fato. Antes a pergunta era o que eles faziam nas demoradas idas ao banheiro, hoje a dúvida mudou de cômodo, é o quarto o lugar do mistério!
O quarto, um não-lugar cheio de perigos. Escrevi em outro artigo que “se antes o bater a porta do quarto e lá ficar por horas a fio remoendo a raiva dos “tiranos” pais marcava um limite ao espaço e tempo (diferenciadores), hoje, ato contínuo, o interior do quarto está povoado pelo acesso virtual das tecnologias modernas… parafernálias, que diluem o efeito separador da liminaridade, suprimem o pensar a própria experiência, impossibilitam ao tempo inscrever seu recado no inconsciente. ” E o quarto está povoado de coisas suspeitas.

A angústia de abandono, característica de tempos onde a família não mais confere suportes robustos à subjetividade, se apresenta nessa fase de forma brutal dada às sempre fugidias tentativas de confirmação da identidade. O quarto do adolescente é invadido por ideias vindas dos mais diferentes lugares.
Por isso muitos adolescentes vulneráveis acabam por cair nas malhas da alienação ou identificação a figuras de destaque, exibicionistas virtuais, acumuladores de fortuna, grandes atletas e suas vidas de gozo ilimitado, radicais políticos, racistas, grandes coaches, líderes religiosos, todos com a oferta de uma imagem idealizada que se utilizam perversamente dos meios de visibilidade social.
Um exemplo é Andrew Tate, um ex-lutador de kickboxing, propagador de uma ideologia da ultramasculinidade, citado na série ‘Adolescência’. Seu currículo é assustador. Venceu quatro campeonatos mundiais, foi expulso do reality Big Brother no Reino Unido, por um vídeo em que aparecia agredindo uma mulher, responde por estupro, tráfico humano e exploração sexual de mulheres. Ele nasceu em 1986, nos Estados Unidos. Para ele, todos os problemas do planeta são culpa das mulheres, a quem chama de fêmeas; seriam elas quem controlam os homens e a vida social. Tate se declara assumidamente misógino. Ele usa as redes sociais para a venda de seus cursos onde promete o enriquecimento e o sucesso. E agora, o mais assustador: ele é seguido por mais de 10 milhões de usuários nas redes. Sua citação na Série é exemplar de um modelo de sucesso que não leva em consideração princípios tidos como desejáveis para a sociedade: moral, ética, respeito, empatia, aceitação, acolhimento, paz… Ele é a antítese de tudo isso. Mais espantoso é constatar que os meios políticos e religiosos estão marcados por símiles dessa figura e arrebanham votações expressivas e massivas. Assustador.
As linguagens ocultas da adolescência – os emojis
O inspetor de polícia que investida o caso conversa com o filho, que estuda na mesma escola com Jamie e Katie, a adolescente que morreu. A relação pai-filho é distante. Mas o filho, Adam, revela a seu pai que ele está errado na investigação. Diz que o problema é a Dinamite, a pílula vermelha, pílula da verdade, explosiva. E que na Manosfera essa pílula é um chamado à ação. A pílula azul é como se vê o mundo. O pai, ao escutar sobre as cores das pílulas relembra o filme Matrix. Adam mal pode acreditar, Matrix já é velho, de outro tempo, uma ingenuidade se comparada ao poder das redes sociais contemporâneas e a multiplicidade de códigos que ela agencia. Códigos esses que os pais desconhecem e os filhos experimentam como verdade!
Adam faz menção à manosfera. Manosfera é uma coleção de sites, fóruns online, blogs, que promovem a chamada masculinidade, propagam a misoginia e uma forte oposição ao feminismo.
Há mais na revelação de Adam a seu pai. Ele fala das proporções: 100%, 80%, 20%, que diz que 80% das mulheres se interessam por apenas 20% dos homens. Isso gera uma massa de excluídos. Alguns desses serão chamados de incel (celibatários involuntários), aqueles excluídos das relações sexuais por conta de não pertencerem ao grupo dos 20%. Ser um incel é uma catástrofe. Para um adolescente às voltas com a construção da identidade sexual a catástrofe é potencializa ainda mais e para aqueles que são expostos nas redes sociais com a marca do incel a catástrofe pode ser letal, como é o caso de Jamie.
Jamie começa a falar…
Uma psicóloga forense conversa com Jamie. Ao falar do pai, revela que ele é legal. Mas que “ele demoliu um galpão uma vez, quando estava muito irado.” Esse ponto é importante. Li alguns comentários de adultos, pais, sobre essa Série que dizem: “Quando eu era adolescente não tinha rede social, mas fui vítima de violência, e nem por isso saio matando as pessoas, ” ou “no meu tempo a gente apanhava ou batia e não ficava traumatizado, tem muito mi mi mi hoje em dia.”

Na verdade, esses pais que sofreram tantas violências no tempo que não se falava em bullying, transmitiram para as próximas gerações essas violências contidas. O pai de Jamie sofreu bullyng, foi espancado pelo pai conforme expressa no último episódio da Série. E o que fez com isso? Fez a si mesmo uma promessa de ser um pai melhor. E, mesmo assim, seu filho se tornou vítima de violência, uma repetição difícil de ser compreendida e, da mesma forma que o pai tem rompantes agressivos, o filho foi ao ato e matou a adolescente.
Ainda com a psicóloga, ela pergunta a Jamie se as meninas sentem atração sexual por ele, ao que ele responde: “Claro que não. ” E complementa: “Porque eu sou feio. ” Ser feio é ser incel, é aceitar esse rótulo, é ter uma imagem e um sentimento interno de si mesmo prejudicado, frágil, vulnerável, desamparado. Jamie convida Katie para sair e ela recusa, dizendo: “Não estou tão desesperada assim.” Frase de alto poder humilhante, de destruição narcísica. Aprendemos com Freud e Lacan que o sujeito defende seu narcisismo usando a agressividade.
A família em questão
Como sempre, a família é trazida à discussão quando se trata de apurar responsabilidades. Aqui não seria diferente.
O pai de Jamir é autoritário, mandão, faz valer sua vontade o tempo todo, impõe um certo medo na esposa e na filha, parece estar à beira de explodir o tempo todo.
Em uma conversa, ficamos sabemos de uma cena de sua juventude. Ele escorrega num salão de dança, seu nariz sangra. Durante anos foi zombado com a frase: “estou sangrando.”

Próximo ao julgamento de Jamie, alguém picha a van do pai com a palavra ‘pervertido’. É o estopim para uma bomba que vai estourar na loja de materiais de construção, ele joga toda a tinta na van, persegue e agride um adolescente. Seus traumas afloram. Ele se perde, perde o controle.
Ao pensarmos a família, vemos que, antes, tínhamos uma família que o pai trabalhava e provia enquanto a mãe cuidava e educava, uma família que se reunia na sala, uma única televisão que entretinha, um respeito amedrontado e estruturante da autoridade paterna, um horário para dormir e acordar, um desejo de logo emancipar-se desse quadro. Hoje, pós movimentos emancipatórios da feminilidade, pai e mãe tem projetos diferentes, ambos trabalham, há um computador em cada quarto, a autoridade paterna ruiu e cada vez mais é adiado o projeto de sair dessa zona confortável da casa. As relações mudaram. As mentalidades infantis e adolescente ficaram mais fragilizadas, expostas ao abandono, ao vazio, ao não saber o que fazer consigo mesmo. Estamos lidando com a ruína das antigas instituições ordenadoras do pacto social e que, a despeito dos estragos que causavam, ainda assim bem ou mal organizavam o universo pulsional. Essa perda é estrutural, é perda simbólica.
O interessante diálogo entre esposa e marido, após o rompante, é bastante revelador. A mãe consegue dizer que o filho “não saía do quarto. Ele chegava, batia a porta, ia direto para o computador. Eu via a luz acesa à uma hora da manhã. Eu alertava. Ele apagava a luz, mas nunca dizia nada. ” Ou seja, algo ali já poderia ser notado, o jovem já expressava algo com essas condutas, mas o que os pais poderiam fazer?
O pai diz: “Não dava para a gente controlar. Todos os jovens são assim hoje em dia. Não dá para saber o que estão assistindo. ” Esse é o retrato de um distanciamento enorme nas relações entre pais e filhos no mundo contemporâneo, a dificuldade de relação, de entendimento.
A mãe: “Ele tem um gênio difícil, mas você também tem. A gente podia ter percebido e impedido. ” A culpa é uma manifestação sempre presente nessas situações.
Pai: “A culpa não é nossa. ”
Mãe: “Mas ele é nosso filho. ”
Pai e mãe falam sobre trabalharem e não terem tempo, serem omissos. Outras faces de uma culpa difusa!
Pai: “Ele estava logo ali no quarto. Achamos que estava seguro. Que mal poderia fazer no quarto? ” Como vimos antes, o quarto hoje está cheio de perigos!
Mãe: “Eu fui uma boa mãe. Você foi um bom pai. ”
Por quê Jamie foi ao ato, por que matou?
Mas há um vídeo. Nele Jamie aparece esfaqueando. Ainda assim, na delegacia ele diz: “Pai, eu não fiz nada. ”
Por quê Jamie mata? É invadido por uma ameaçadora angústia despersonalizante, insuportável, vê-se na condição de abandono e não pertencimento ao grupo (100%, 80%, 20%), é humilhado na rede social, remetido a uma condição de objeto de zombaria, constata sua falta de autoconfiança, sua autoestima é destruída, seus recursos simbólicos são escassos (seu pai vira o rosto para não confrontar a humilhação pública de seu filho). Jamie é sim autor de um crime, mas também é vítima.

Seu ato violento é o último recurso para livrar-se de uma insuportável vivência de desamparo, é a falência da palavra como instância mediadora para tornar pensável o insuportável. Tudo isso falha em Jamie.
Jamie diz: “Não fui eu. ” Talvez ele tenha razão, quem matou a Katie foi a herança psíquica recebida de uma sociedade que cultiva a transmissão da violência, de geração em geração. Hoje com o agravante da internet (esse espaço de projeção psíquica) as violências são dirigidas ao narcisismo, atingem diretamente os sujeitos que sustentam seu ser no imaginário, na autoestima que vem de fora. Quando o que vem de fora é violento, crítico, excludente, tudo isso fragmenta o narcisismo, desestabiliza o ego, e para defender-se de uma angústia mortal só resta a agressividade como recurso último.
“Não fui eu”. Talvez haja um fundo de verdade nessa frase. Ainda que o vídeo mostre Jamie esfaqueando, talvez ele queira dizer que não reconhece nele o sujeito capaz desse ato. Está dissociado dele mesmo. Ele está tão alienado às redes sociais e à linguagem da internet que é como se ele tivesse obedecendo a um comando vindo de outro lugar, de outro alguém. Neste caso, não foi ele mesmo!