A Verdade que insiste em não se mostrar

“Vocês têm alguma prova”?

Ter uma prova. Esse passo a ser o índice da honestidade. Não importa se alguém cometeu ou não um ato ilegal. O que importa é se ele foi filmado, fotografado, gravado. Se não foi, então sou inocente. 

No filme A Sala do Professores, estamos diante de um acontecimento que permite pensar sobre o tema da verdade. O contexto é uma escola onde acontecem roubos. Uma câmera captura uma cena, denuncia o roubo e quem o faz. Estaríamos diante da verdade. Mas a verdade mesmo descoberta é negada. É o reino da pós-verdade. A visão parcial mostrada pela câmera suscita a dúvida. A verdade é impossível, dizia Lacan. 

ALERTA DE SPOILER !

As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.

Filme A Sala dos Professores 2023 - Das Lehrerzimmer - Cinema e Psicanálise

Somos informados sobre o tema do filme na cena inicial. Direção e professores interrogam alunos sobre os roubos que estão acontecendo na escola. Incomodada, a professora Clara Nowak tenta mediar a situação, aliviando a tensão sobre os alunos, colocados na pressão de denunciar seus próprios colegas. 

Em sala, a professora ensina matemática e a pergunta que surge é sobre ‘prova’ ou ‘suposição’. Afinal, 0,999 é igual a 1? 

Alguns alunos afirmaram que sim, outros que não. Onde está a verdade? Essa será a vertente do filme, a divergência sobre o real, sobre a verdade. Interessante notar que se até um exercício de matemática, que é racional, cálculo, é exato, mesmo assim causa dúvida e divergência, o que dizer de questões subjetivas.

Um roubo é uma subtração. É um cálculo que se faz. Quanto se roubou? Qual o tamanho, valor do prejuízo? Mas também é subjetivo, envolve a relação do sujeito com o outro.

Professores fazem uma revista em sala de aula, pedem às meninas que se retirem, numa clara naturalização do gênero que rouba. A primeira suspeita recai sobre o menino Ali, filho de imigrantes de origem árabe. Ele tinha dinheiro na carteira, dado por seus pais para comprar um jogo. Mais tarde pedem desculpas ao menino, mas as consequências desta suspeita serão duradouras.

A segunda suspeita surge da afirmação de uma professora ao dizer que os roubos começaram quando a nova empresa de limpeza foi contratada pela escola. 

Em ambos os casos, a desconfiança aponta alguma forma de preconceito. Estamos falando da Europa?

A professora Nowak presencia uma colega subtraindo umas moedas do cofre ao lado do café. O que fazer com um olhar? O que fazer quando se flagra o outro em um ato ilícito?

Um aluno é flagrado colando, um papel com sua letra o denuncia. Ainda assim ele diz à professora que a cola “não é minha”.

Na aula de educação física uma aluna finge que não está se sentindo bem. Logo é flagrada fumando, estava mentindo. Esconde um isqueiro entre as pernas.

A Filmagem do roubo

A professora, incomodada com os roubos, decide deixar a câmera de seu notebook ligada próxima à sua blusa. O roubo acontece. É filmado. Aparece um detalhe da roupa de quem cometeu o roubo. A prova. A dúvida. Antes dos aparelhos que captam as imagens, a verdade era revelada pela palavra, pela narrativa. A palavra tinha valor. Hoje a palavra foi substituída pela imagem, pela captura da realidade nas telas.

Ainda que tenha sido flagrada em roubo, a facilidade com que nega a autoria do fato nos faz pensar que a verdade, como sempre, pode ser manejada. E neste caso, negada. Não se trata da verdade, mas do colocar em questão seu direito de me expor. Ainda que com alguma distância, podemos fazer intervir aqui a noção do que se chama de pós verdade, que, em síntese quer dizer que a “verdade” escaparia aos fatos, ainda que provados.

A funcionária, diante da acusação, diz: “Vocês têm alguma prova”? “Já viram se algum dos 70 funcionários tem uma blusa parecida”? A blusa tem desenhos que seriam muito difícil alguém ter uma igual. Ela faz o drama.

Um problema surge, “seu vídeo viola os direitos pessoais.” O jogo vira e agora a professora de vítima (com uma prova) passa a culpada.

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Inicia o drama de Oskar, o filho da funcionária acusada, ele é aluno da escola, aluno da professora que filmou a mãe dele. Nowak lhe dá um cubo mágico. “É matemático e não mágico. Fique com ele até resolver”, ela lhe diz. Qual o simbolismo desta cena? O mundo racional pode resolver as questões que parecem impossíveis? 

Para defender a mãe (e não apenas ela, mas ele também!) Oskar diz: “Não foi ela”. Mas como ele pode saber? 

A Reunião com os pais dos alunos

Sra Kunh, a funcionária acusada, chega. Molhada da chuva. E diz: “Essa mulher gravou vídeos às escondidas na escola. Eu não acreditaria numa palavra do que essa professora diz”. Desacreditar o outro quando esse é portador da verdade parece uma estratégia muito usada hoje em dia, dias em que a verdade perde seu valor.

Desmentir. Desmoralizar quem está com a verdade. Não se trata mais da verdade e sim qual o uso que alguém pode fazer dela. Então, desmoralizar quem diz a verdade, destrói a própria verdade. Destruir a imagem do outro faz desacreditar a verdade da qual ele é portador. É uma estratégia.

Em sala Nowak explica aos alunos que a ciência substitui a religião na explicação dos fatos. “Os cientistas buscavam verdades universalmente verificáveis. O tema da verdade verificável está presente aqui. É o tema do filme. Mas como fica a verdade em tempos de pós verdade? A era moderna buscava verdades verificáveis. A era contemporânea busca desacreditar verdades comprovadas e impor mentiras como se fossem verdades.

Oskar pergunta: “Vocês têm alguma prova”? É a mesma pergunta que sua mãe fez. E ele nega com a mesma intensidade com que ela negou. E ordena: “Quero que diga que ela é inocente. Publicamente”. E ameaça a professora: “Você vai sofrer as consequências”. Ele está agressivo. E já sabemos que ela de fato as sofreu.

Os professores se voltam contra Nowak. Estão incomodados com a gravação. O que teriam a esconder?

Os alunos entrevistam a professora. Ela pede para ler a reportagem antes deles publicaram no jornal da escola. Estão agressivos também. 

Todos com blusa igual

A professora começa a ver todas as pessoas da escola usando a mesma blusa que a funcionária usava quando foi filmada roubando. Podemos interpretar de várias formas:

  1. Nowak está alucinando. Foi engolida pela situação e começa a duvidar de si mesma. É uma forma de loucura. 
  2. O diretor do filme quer mostrar que na escola e no mundo contemporâneo, todos são iguais. Capazes dos mesmos atos. Todos roubam ou poderiam roubar.
  3. O diretor quer mostrar que todos são culpados. À sua maneira todos desmentem a verdade. Ninguém quer a verdade.
  4. Todos são solidários à funcionária, que mente, e contra a professora que revela ou pode revelar a verdade.
A Sala dos Professores | Maior do que qualquer dúvida | CinemAqui

Oskar rouba o computador onde está o vídeo que incrimina sua mãe, lança-o no rio. É o roubo da prova. É a morte da verdade.

Em sala os alunos agora estão indisciplinados, desobedientes e hostis. Tudo isso ancorado num sorriso triunfante de Oskar, sorriso que comunica à professora que ela começa a perder uma batalha e que a guerra é inevitável. Oskar, mesmo em seu silêncio, lidera uma revolta.

O Jornal da Escola

Ele começa a ser veiculado sem que a professora tenha lido antes, é claro. A professora se revolta, há distorções da verdade dos fatos. “Incluímos o que você omitiu”, dizem os alunos. Aqui a pós-verdade ganha seu pleno sentido.

Nowak diz: “Vocês distorceram e tiraram as coisas do contexto”. Eis dois temas frequentes da manipulação da informação, da verdade e dos fatos: distorcer e descontextualizar. O que mais chama atenção nessa cena é um cartaz na sala destes alunos, onde eles escrevem o jornal: A VERDADE VENCE TUDO. 

Qual verdade? Por que os alunos, crianças e adolescentes, acreditam que o que escreveram no jornal é a verdade?

Notícias do filme A Sala dos Professores - AdoroCinema

Segundo o Dicionário Oxford, a pós verdade “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. 

A verdade fica exprimida entre elas, tentando sobreviver. No mundo das complexidades que ganham tamanhos ultra dimensionados, não é simples resolver um conflito como esses, afinal eles ganharam os espaços virtuais e se propagaram em velocidade acelerada. Dar o ganho de causa para um lado ou outro é tão complexo que a solução é a entrada em jogo de outro agente, o filho da funcionária. 

Este, sentindo-se humilhado pela turma pela acusação do roubo da mãe, assume outras camadas dramáticas, tão reais e factíveis nos dias de hoje. 

Não se trata mais da verdade dos fatos e sim da verdade subjetiva, a verdade de cada um, e do como cada um pode peticionar a seu favor uma verdade que lhe convém ou que lhe pareça justa. Espalhar fake News tem o objetivo de seduzir o outro, trazê-lo para uma suposta verdade, verdade essa que já sofreu toda sorte de manipulação e distorção, sempre tendendo a um propósito, no mais das vezes escuso. O ódio encontra um escoadouro nas fake News. Trata-se de um uso da linguagem para propósitos bem definidos. Em tempos de incertezas, não se quer mais saber da verdade, o que se deseja é que alguma coisa impactante, ainda que inverossímil, venha ocupar o lugar do vazio. 

A pós-verdade desbanca a importância da verdade pois nela os fatos de menor importância ou duvidosos é que são revelados. Uma mentira passa a ser uma verdade e para isso são acionadas as emoções e não os fatos científicos comprovados.

O Grito

Nowak convoca os alunos a gritarem. É a descarga necessária diante da enorme carga de tensão que todos estão vivendo, professores, alunos. Após isso alguns alunos se desculpam com ela. 

Sala dos Professores - Leia a crítica do filme indicado ao Oscar

Oskar, mesmo suspenso, entra em sala de aula. Após um tempo enorme onde apenas ele e a professora ficam na sala, ele devolve a ela o cubo mágico, resolvido.

Na cena final, Oskar não se rende. É retirado da sala pela polícia, carregado com carteira suspensa, feito um trono. 

Podemos ler nessa cena o coroamento da inversão hierárquica, da desautorização do professor? Ou a cena nos leva a pensar na falta de orientação das escolas para lidar com situações de conflito? 

A cena do menino Oskar sendo carregado sugere sentidos antagônicos, por isso faz pensar, por isso faz o filme ser bom e reflexivo.

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