A Pulsão e a Culpa

“Preciso saber que fiz uma coisa boa na vida”.

O sentido de uma vida pode estar contido nessa frase. Saber que fez algo bom durante sua trajetória tem um sentido tão poderoso que pode ser a sensação que falta para poder libertar-se e enfim, morrer em paz. 

Esse o desejo do personagem principal do filme A Baleia

Do mesmo e polêmico diretor Darren Aronofsky, temos os filmes: Mãe (Mother), Noé (Noah), Cisne Negro (Black Swan), O Lutador (The Wrestler), A Fonte da Vida (The Fountain), Requiém para um Sonho (Requiem for a Dream) e Pi (π).

ALERTA DE SPOILER !

As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.

Crítica | A Baleia - Fala aí, Rafa Pires

Charlie é professor de redação, trabalha de sua casa e nunca abre a câmera para seus alunos, sua obesidade mórbida não o permite. Melhor esconder-se.

Há uma chuva insistente e personagens que entram e saem do pequeno grande mundo criado para conter o peso de sua vida. 

MOBY DICK, O LIVRO

Tamanha água pode ser uma referência ao livro Moby Dick, do escritor Herman Melville, publicado em 1851, cuja presença no filme propõe metáforas o tempo todo.

Livro Mody Dick de Herman Melville

O livro é a narrativa de Ismael, um curioso sobre a vida dos baleeiros, que embarca naquela que será a última viagem do navio Pequod. Ele parte da costa leste dos Estados Unidos e a tripulação é formada por homens muitos diferentes entre si, pela etnia, posição social, idade. Seguem para os mares do Pacífico Sul, em busca da baleia branca. São guiados pelo Capitão Ahab em sua busca de vingança contra a grande baleia branca Moby Dick que no passado arrancou a sua perna. 

O livro detalha as práticas da caça à baleia, comuns naquela época, a técnica de extração do óleo de baleia, bem como a vida a bordo, a exploração humana e grandes discussões sobre a existência de Deus.

Voltando ao filme, eis que chega à casa de Charlie um rapaz, ele é missionário de uma Igreja, diz ter ido levar a salvação. É o início do tema religioso.  

Charlie tem vários sintomas no corpo e na alma. Há doenças de vários tamanhos.

A CULPA QUE DESTRÓI

Ele pede desculpas, fará isso o tempo todo. Sua amiga e enfermeira, Liz, pergunta por que ele pede desculpas. Ele é movido pela culpa. Uma culpa cuja raiz está em seu passado, culpado por ter feito uma escolha.

Freud diz que pacientes culpados nem sempre a sentem na forma de remorso, mas na forma de doença. Sentem-se doentes ou mesmo adoecem em função da culpa. A culpa é o peso que ele carrega. 

Peso tornado real, um real instalado no corpo. 

A escolha de uma baleia para representar essa dor e as consequências de uma escolha sugerem que a baleia é a culpa, o peso. A quase antipática associação entre o destino de sua vida e a forma da baleia revelam o tamanho de seu drama. 

A obesidade derivada de sua compulsão em comer o transforma. A pulsão de morte escolhe um objeto para circular e incorporar, objeto mortal em seu exagero.

Liz conversa com o missionário sobre a sugestiva Igreja Nova Vida, a Seita do fim dos tempos, e diz que essa igreja “lhe causou muita dor”, e que “ela matou o namorado dele”. O fundamentalismo religioso pode causar a morte de um sujeito por conta do preconceito relativos às questões sexuais, pela exclusão terrível a que submete aqueles que divergem em suas sexualidades. 

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Enquanto isso Charlie se agarra a uma redação feita pela filha anos antes. Nela, a filha faz uma crítica ao livro Moby Dick. 

No livro temos em evidência a causa do sofrimento de Ahab, o pedaço da perna levado pela baleia. No filme temos a causa do sofrimento de Charlie, a culpa pela separação da filha. Charlie e Ahab querem destruir a causa de seu sofrimento, a baleia e a culpa pelo abandono da filha. 

A baleia é a filha que precisa ser domada, capturada, ela que é impulsiva, cruel, foge, desaparece, tal qual a baleia. No livro Ahab arpoa a baleia e morre. No filme, quando Charlie consegue fazer as pazes com a filha, ele morre.

Na redação feita pela filha ela destaca que Ahab acredita que ficará melhor se matar a baleia. Tem pena dele. Afirma que isso é triste porque a baleia não tem emoções. É só um pobre e enorme animal. E conclui a redação: “Este livro me fez pensar na minha própria vida.”

O ABANDONO, UMA DOR DIFÍCIL DE CURAR

Quando visita o pai após anos de separação, ela o trata com linguagem áspera, e profere as palavras “nojento” e “pai escroto que me abandonou aos 8 anos”. O tema do abandono é de grande importância na vida psíquica. Em alguma medida não há quem seja indiferente a ele, todos temos algum conhecimento de sua existência. 

Quando o abandono não é fantasiado mas ocorreu na realidade, a chance de se transformar em ódio é muito grande pois os estragos que podem ocorrer podem se enraizar por várias áreas da vida. Por vezes a vida toda é interpretada a partir desse fato. E aqui vale notar que é o amor que se transforma em ódio, o abandono sendo a causa de tal transformação.

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Um diálogo é muito revelador de condição de Charlie. A filha, Ellie, pergunta: “Por que engordou tanto”? E ele responde: “Alguém próximo faleceu e isso me afetou”.

Estamos diante do luto. Um luto que insistiu em não se realizar e se transformou numa reação patológica. 

No passado, Charlie se envolveu com Alan, deixou a família, assumiu o romance. Alan morre. Charlie mantém intacto o quarto onde vivia com Alan. Uma chave mantém esse quarto fechado. Esse é o recinto fechado do luto, de uma travessia não realizada. De um processo de separação que não ocorreu. Em vez disso, Charlie passa a comer, a compensar a falta pela introjeção de um objeto suturador, de prazer, a comida. 

COMER COMPULSIVO, UM ATO CONTRA O VAZIO

Freud fala de uma identificação do ego com o objeto abandonado. Charlie traz o Alan para dentro de sua vida psíquica. Alan morreu por se alimentar pouco. Enquanto ele morre por não mais comer, Charlie o alimenta, compulsivamente e isso o levará também à morte. A compulsão alimentar aparece no lugar das perdas que não podem ser representadas, simbolizadas, elaboradas. Comer é o contrário de falar.

Charlie e Alan escolhem pela oralidade seus modos de resolução das angústias. Ambos tentam encontrar a extinção através da relação com o alimento. Alan faz uma recusa ao alimento. É o esvaziamento libidinal, a pulsão que não circula mais o alimento enquanto objeto de satisfação. Com isso perde peso e morre. 

Ao contrário, Charlie intensifica a relação com o objeto comida a ponto tal de tentar uma saturação. Quer comer tudo, livrar-se da angústia deixada pelos vazios ocasionados pelas perdas. De tanto comer, engorda, torna a vida impossível e morre. Os dois perderam o sentido que segura o sujeito preso à vida. E começam a construir uma morte lenta.

Os discursos sobre a morte, sua proximidade, estão presente no filme. O missionário anuncia em seus discursos o final dos tempos. Em Moby Dick, o personagem Elias profetiza a morte de todos a bordo, menos um. A amiga e enfermeira Liz profetiza que Charlie vai morrer naquela semana.

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Liz conta para o missionário a história da morte de seu irmão, Alan. Ele era membro da Igreja Nova Vida. O pai dele queria que ele se casasse com mulher da igreja. Em vez disso, ele se relaciona com Charlie. O pai o expulsa da igreja por causa disso. Ele fica desestruturado, não dormia, não comia, perdeu muito peso. Foi encontrado morto. Podemos pensar no suicídio aqui, nestes suicídios lentos, cuja autodestruição se dá aos poucos. 

A INFLUÊNCIA DO SOCIAL SOBRE A VIDA PSÍQUICA

Alan sente os efeitos do abandono. Os discursos e práticas religiosas excludentes são capazes de produzir efeitos psíquicos letais. O preconceito pode matar. Nestes casos, temos o corpo afetado pelo Outro. O antropólogo Marcel Mauss escreveu um texto chamado: O efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade. O fenômeno ocorre no sujeito após romper um tabu altamente repreendido pela sociedade. A partir desse momento inicia-se um mal-estar psicológico, afetando o corpo biológico, levando à morte.  Ele escreve: “a influência do social sobre o físico conta com uma mediação psíquica evidente, onde a própria pessoa se destrói, e o ato acaba sendo inconsciente, evidenciando assim uma exploração à psicologia em que a mediação psíquica é também uma mediação corpórea, ele apenas se crê, por razões coletivas precisas, em estado próximo da morte”. 

Ou seja, quando o meio social determina a morte social de um sujeito (pelo abandono, demissão ou expulsão) o corpo pode entrar em processo de doença ou mesmo de morte.

O drama da filha também é sério. Ela vive as consequências do abandono. “Você me trocou por seu namorado”, diz ao pai. Ellie precisa vingar-se do pai – arpoá-lo – por ele a ter feito um mal, o abandono.

Charlie precisa domar a filha, impulsiva, cruel, a Baleia que aparece e causa estragos. Ele tenta fazer com que ela não escape. 

Há uma ideia de salvação no filme, todos querem salvar Charlie e, no fundo, todos querem salvar a si. O missionário, por traz do discurso religioso e da salvação, escondia um sujeito que usava drogas, pressionado, perdido, idealista e que fugiu por ter cometido um roubo. Salvar o outro era um modo de querer salvar a si mesmo. Ele faz crer que a salvação depende da conversão religiosa.

Para Charlie, a salvação é aqui, no resolver seu problema com a culpa na relação com a filha. A salvação de Charlie é terrena, é livrar-se da culpa. Liz tenta salvar Charlie, quer que ele vá ao hospital. Ela que talvez carregue algum sentimento por não ter conseguido salvar o irmão.

O LEGADO QUE CHARLIE QUER DEIXAR PARA A FILHA

A ex-esposa de Charlie aparece, não apresenta sinais de vaidade aparente, está mais para algum descuido consigo mesma, decepcionada com a filha cruel. Pede para se aproximar do corpo de Charlie e ouvir sua respiração ofegante. “Posso ouvir?”, diz. E se acomoda no peito dele. Há um carinho e uma carência. Logo vão falar sobre dinheiro, todo dinheiro é para Ellie, a filha. Em sua ânsia por redimir-se da culpa, diz: “Preciso saber que ela vai ter uma vida decente, na qual ela se importa com os outros e os outros se importem com ela”.

É interessante notar que no filme e livro Moby Dick, o capitão Ahab oferece todo seu dinheiro para a caça à baleia. E aqui no filme A Baleia, Charlie reserva e doa todo seu dinheiro para a filha, para garantir ou ter a sensação de estar perdoado. Ambos morrem em função dessa decisão.

E é nesse diálogo com a ex-esposa que Charlie vai dizer a frase síntese do filme: “Preciso saber que fiz uma coisa boa na vida”. Expressa com ela sua necessidade de redimir-se da culpa pelo abandono, restaurar o próprio narcisismo e seu ideal afetados pelas consequências de sua decisão, pagar o preço pelo desejo por ter deixado a família para viver com o namorado, o Alan e por fim, acertar as contas com o passado e poder morrer em paz.

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O encontro do olhar de entregador de pizza com Charlie é dramático. Impressionado, o entregador não consegue disfarçar o horror do que vê. Charlie vê-se sendo visto. O retorno da própria imagem mediada pelo olhar assustado do outro lhe remete ao insuportável de si. Inicia uma devoração, come tudo o que pode, come compulsivamente, passa mal. É uma forma de passar ao ato uma dor insuportável, uma tentativa de preencher o vazio interno deixado por tantas ausências, da filha, da vida social, do namorado…  Devorar a comida é autodestrutivo, a culpa o força a comer. 

De novo o missionário, desta vez insinuando que Alan morreu por ter escolhido ficar com Charlie. Diante de tal absurdo, Charlie devolve: “Acha que o Alan morreu por escolher ficar comigo”? De novo a interpretação da Bíblia levando à exclusão e à morte, ao preconceito. Charlie se defende afirmando que foi uma história de amor. Só mesmo o amor para fazer frente ao absurdo interpretativo.

Em sua última aparição, Ellie lê a redação para o pai. “Este livro me fez pensar na minha própria vida, e então me fez me sentir feliz por ela”. Por fim Charlie se convence de que sua filha é capaz, que é inteligente, que fez e fará algo bom por alguém. Aliviado em sua busca por redenção, Charlie se reconcilia com a filha.

É também o momento em que o diretor do filme faz Charlie levitar. Agora aliviado de sua culpa e tendo a sensação de que transmitiu algo bom para a filha, pode, por fim morrer. 

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