A Fantasia, o Desejo e o Gozo.

“O que há comigo hoje? ”

Essa pergunta transparece o inconsciente, esse outro lugar onde se tramam as palavras e os afetos que nos dominam. Nem sempre saberemos o que se passa conosco, ignoramos quase a todo momento as reais ideias e motivações inconscientes e vamos à deriva daquilo que nos chega nas formas de incômodos, angústias, desejos, dores, vontades, pensamentos, culpas…

No filme A Bela da Tarde, Severine não sabe o que lhe acomete quando está prestes a realizar seu desejo ou sua fantasia. Realizar desejos e fantasias pode ser muito bom mas pode ser de igual forma perigoso, desestabilizador. 

Filme realizado dentro das ideias do surrealismo, movimento artístico nascido em Paris na década de 1920, influenciado pela Psicanálise, que dá lugar ao inconsciente no processo de criação onde são reunidas as simbologias, os aspectos irracionais e não convencionais da arte, além da abstração. Constitui a busca de uma linguagem artística que mostre o inconsciente e os sonhos. 

ALERTA DE SPOILER !

As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.

bela da tarde carro

O título deste filme é uma licença para expressar o que em França se diz Belle de Nuit, a bela da noite, ao se referir às prostitutas. Aqui, a bela se prostitui à tarde.

Severine se entrega à fantasia de prostituir-se. E a Psicanálise deixa ver que a histeria abre a possibilidade de olharmos para as fantasias, sobre o desejo insatisfeito, sobre formas de realização do desejo via fantasia. Ela que traz consigo as consequências de ter sido abusada sexualmente, carrega um trauma. Não seriam todas essas formas de interpretação calcadas num ideário mofado? 

Afinal, Severine também se apresenta como Mulher, como aquela que pode experimentar outro Gozo, não o da mulher que se cria para a fantasia do homem, mas aquela que pode colocar em cena seu desejo. Aquela que tem na fantasia não um problema e sim uma possibilidade de realizar. Aquela que se recusa a ser objeto de desejo de seu marido na posição de uma passividade esperada, mas que tomará a seu empenho ocupar outra posição, a de uma atividade quando está no bordel. Ainda teríamos que analisar o que representa uma mulher num bordel. Objetificação do corpo feminino ou direito ao gozo?

Mas Severine nos oferece outras possibilidades de pensar sua decisão. Sua presença num bordel é uma escapada dos modelos e protocolos aristocráticos e burgueses de uma Europa centrada numa moralidade religiosa. Aliás, ela também está em luta contra as repressões religiosas. 

Fantasias femininas

belle de jour

Sobre as fantasias de prostituição, que poderiam parecer alguma aberração para alguns, trago o que disse Diana Corso. Referindo-se a uma frase no mínimo infeliz dita por um certo senhor que queria ressaltar as qualidades de sua esposa diferenciando-a de uma outra mulher que não seria tão pura assim, ela escreveu que “talvez esse senhor ficaria alarmado se soubesse da “prostituta interior” que mora dentro de cada mulher comum, ou seja, da importância de fantasiar com uma entrega paga e indiscriminada, mesmo para as aparentemente mais castas. Ficaria mesmo assustado, se suspeitasse que filmes como “A Dama da Lotação” (inspirado em um conto de Nelson Rodrigues, 1978), ou o francês “A Bela da Tarde” (Luis Buñuel, 1967), são baseados em fantasias mais femininas do que masculinas. Neles, as personagens de Sônia Braga e Catherine Deneuve abandonam uma vida burguesa e convencional a cada tarde da semana para viver, clandestinamente, o prazer compulsivo da entrega a homens quaisquer. Ao fim do dia, voltam à vida normal, como se nada tivesse acontecido. Certamente ele não gostaria de saber que ser uma dama na sala e uma prostituta na cama não é uma exigência masculina, é uma fantasia feminina corriqueira. ”

Tal qual a vida psíquica, o filme faz trânsitos entre fantasia e realidade difíceis de serem percebidos. Numa carruagem, ela e o marido, de repente o marido se transforma, ordena que a estuprem, é o sonho, a fantasia de Severine, O rosto de Séverine passa rapidamente da surpresa e indignação para o prazer mais puro enquanto lhe são lançados ao rosto e corpo as dores e as escatologias. É tentador pensar que essa fantasia expressa algo de masoquismo. E não faltaram textos a discutir essa questão. A psicanalista Collete Soler no livro O que Lacan dizia das Mulheres, escreve que o tal masoquismo feminino não passaria de uma abstração dos próprios psicanalistas ao não entenderem que o desejo feminino poderia se permitir ser objeto de desejo para um homem sem que isso implicasse alguma forma de masoquismo. O que nos leva a uma boa solução, a de diferenciar o desejo masoquista da posição masoquista. 

Diferente do homem que goza falicamente, o gozo feminino é de outra ordem, cujo embaraço não cessa de manter sem resposta a incômoda pergunta sobre o que quer uma mulher. A cultura falocêntrica concentra o gozo masculino na realização do gozo fálico-peniano. 

A Mulher denuncia a existência de outro gozo, misterioso (onde a mulher goza?). Lacan diz que é suplementar. 

A cena muda para o quarto revelando que era uma fantasia. Seu marido, Pierre, lhe pergunta “O que você está pensando? ” E ela diz “Em nós. ”

Quando o desejo se apresenta como angústia

No taxi, a ideia do Bordel a captura. Chega em casa e derruba vaso de flores. Derruba frasco de perfume. Se pergunta: “O que há comigo hoje? ” Lacan diz que a angústia é o signo do desejo. Quando alguma angústia se agita pode ser que algum desejo proibido, vetado, pecaminoso, perigoso, tenha sido ativado. É o inconsciente agindo. Vladimir Safatle muito bem escreveu que “não podemos esquecer que, para Buñuel, assim como para todos os surrealistas, é o irracional que governa o mundo e o comportamento humano. Buñuel acreditava que o irracional é mais verdadeiro que o racional, pois ele é mais presente, mais potente e mais ativo. Tudo aquilo que é ligado ao homem é da ordem do imprevisível. ”

Há uma cena de abuso, somos avisados que o pai ou um adulto a seduz. A associação de cenas do filme com essas fantasias de degradação e abuso na infância são imediatas. No inconsciente um acontecimento traumático recalcado gera uma conduta sexual sintomática.

A Bela da Tarde - Lelle de Jour 1967 - Angústia - Cinema e Psicanálise com Célio Pinheiro

Na primeira vez que vai ao bordel, vem à lembrança a Igreja e a recusa à hóstia. Essa junção entre sexo e religião nos permite entrever a direção do filme e sua crítica às crenças e práticas. Duas cenas trarão esse tema de forma bastante evidente, expondo a infância da personagem. Numa delas, um abuso, ela é assediada e se vê acariciada por um senhor mais velho. Em outra ela dentro da igreja no dia do evento da primeira comunhão onde ela se recusa a tomar a hóstia ofertada pelo padre. Pela recusa da hóstia ela recusa os desígnios religiosos que condenam as mulheres a uma destinação angelical e casta. Em sua fantasia pode se tornar objeto das sevícias e aos desejos de uma sexualidade impensáveis para uma mulher de seu tempo e status.

Se há algo de uma degradação no desejo de Severine? Sim. Ela se faz o objeto das fantasias masculinas mais vis e com isso alcança uma possibilidade de também gozar. Mas é uma degradação que não a desvaloriza, antes, possibilita que um gozo institua seu lugar de mulher.

Interessante notar que ela está segura de seu amor pelo marido, mas com ele não consegue a entrega sexual, e, na direta proporção de sua entrega a outros homens cresce seu amor pelo marido. Aqui temos uma grande subversão. Em textos sobre A Psicologia do Amor, Freud fala de uma tendência dos homens em separar amor e sexo, corrente afetiva de corrente sensual. Severine, sendo mulher, faz essa subversiva dissociação.

Severine diz ao marido: “Desde seu acidente eu não sonhei mais. ” Há algo de um desejo insatisfeito aqui. Quando ele era potente, ela não o desejava, não podia desejar e apenas fantasiava. Agora que ele está impotente, não precisa mais fantasiar. Joseph Kessel, escritor do livro A Bela da Tarde, escreveu:

“Expor o drama da alma e da carne sem falar tão livremente de uma como de outra parece-me impossível. O que eu tentei fazer com A Bela da Tarde foi mostrar o terrível divórcio entre o coração e a carne, entre um verdadeiro, imenso e terno amor e a exigência implacável dos sentidos. Escolhi tratar este assunto tal como se toma um coração doente para melhor saber o que se esconde num coração são, ou tal como se estudam as perturbações mentais a fim de compreender o movimento da inteligência. O assunto de A Bela da Tarde não é a aberração sensual de Séverine, é o seu amor por Pierre independentemente desta aberração, e é a tragédia deste amor”.

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