A Erotomania na vida cotidiana

Bebê Rena - Baby Raindeer 2024 - Erotomania - Cinema e Psicanálise com Célio Pinheiro
“Então nunca sentiu nada por mim?”

Constatar que o outro não é um espelho do seu desejo causa um desarranjo imenso em qualquer situação, para qualquer pessoa. Quando se trata de alguém cuja estrutura psíquica tem o seu modelo na psicose, as consequências são potencialmente maiores e mais perigosas.

Em Psicanálise dizemos que Erotomania é a crença do amor onde ele não existe. Trata-se de uma psicose. Constatar o Real do desejo do outro pode ser uma decepção imensa e desencadear um processo vingativo que pode alcançar extremos. 

Baseada numa história real – o que é o real de uma história? – os personagens Martha e Donny nos levarão a camadas profundas e a modos extremos de imbricação psíquica. 

Seis meses foi o tempo que ele demorou para ir à polícia. E ouviu: “Por que não denunciou antes”? Qual o tempo para perceber que sua vida está em perigo, que se está numa prisão?

A prova do crime? Ele mostra um e-mail onde está escrito: “Acabei de comer um ovo”. Para quem está na condição de vítima receber o e-mail acima pode ser um horror. Um ato banal pode sinalizar algo muito grave, apenas para quem é vítima. O policial lê, não vê nessa frase nada que possa indicar um crime. Mas há. Apenas o contexto de uma frase revela seu significado mais complexo. Neste caso, a personagem Martha persegue um comediante, lhe envia centenas de e-mails, invade sua vida e, para ele, o simples comunicado de que ela comeu um ovo tem um efeito de terror. 

ALERTA DE SPOILER !

As colunas neste site são dirigidas a quem já assistiu a obra pois contém referências e revela elementos importantes sobre a história que poderão estragar a experiência de quem ainda não a assistiu. Recomendamos que assista toda a obra e depois volte para ler a coluna.

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O início da imbricada história

A história começa quando ela chega no bar onde ele trabalha como garçom. Ela não quer nada, diz não querer nada. Estranho ir num local onde pessoas consomem coisas, comida, bebida e não querer nada. Mas não, ela quer nada, talvez queira apenas mostrar que o nada é presença em sua vida. De qualquer forma essa parece ser uma demanda bem dirigida ao Outro, ‘eu não quero nada’, mas veja o nada que eu te apresento. 

“Eu não tenho dinheiro”, ela lhe diz, sem o devido pudor dos despossuídos. Sua comunicação de miséria é algo sedutora. Essa frase é uma demanda de amor! Caindo na armadilha, ele diz: “que tal um chá por conta da casa?”

Ato contínuo ela levanta a cabeça, dá um sorriso, sente-se envolvida (amada). Interpreta como sinal de amor. Ela não tem dinheiro para consumir no bar. “Eu senti pena dela”, ele dirá. Agora ela o amará com todas as forças, afinal ele a ‘amou’ primeiro. Esse é o enredo inicial da psicose chamada Erotomania. A suposição (certeza delirante) de que o outro me ama e que por isso devo também amar. 

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Ainda que ela tivesse dito “não posso demorar”, fica até o final do turno de trabalho dele. Sempre dizendo estar muito ocupada com compromissos de trabalho, advogada de pessoas famosas. 

“Eu servia sempre de graça”. Sabemos que nunca, nada é de graça. “Ela nunca bebia”. Queria outra coisa, é sempre assim, o objeto é sempre fugidio, nunca reencontrado e por mais que se o dê, nunca será reencontrado. 

Ele passa a ser a rena favorita, deixando claro, não para ele, de que não é uma relação entre sujeitos. Ele é um objeto ou um espelho para ela. Não admira que ela não dê importância para o chá que ele lhe dá e ela “nunca bebia”. O objeto era ele.

Ela ria, era animada. Ele a elogiava. Não se dava conta de que a estava seduzindo. Não se dar conta dos efeitos de seus atos sobre outra pessoa pode ter alto custo!

Na lanchonete ela pergunta se ele a leva a sério. Sim, diz ele, e ela sorri alto. “Sério, mas como amigos”, retruca ele, já percebendo em algum nível que algo dele estava comprometido com ela. “Amigos coloridos”, diz ela, retrucando e negando qualquer sinal de que a castração tenha produzido seu efeito. Ele está em maus lençóis. 

Quando o tema são os vídeos dele, ela logo diz que são ruins. Ele diz que é comediante para ser feliz, e ela pontua: “Alguém te magoou. Dá para ver. É um guerreiro com armadura rachada, como um ferimento”. Mais adiante nós saberemos que ela tinha razão, ele tinha um trauma. Mas ela já havia percebido. A psicose, por ter o inconsciente a céu aberto, percebe mais e melhor o real. 

Martha revela querer ter um superpoder: o poder de entrar nas pessoas. Um zíper. É o sonho do Eu ideal, de fazer fusão com a imagem do outro.

Mas Martha também tem alguma dimensão do lugar para onde está caminhando e que esse lugar não é bom. Após dizer que o ama, completa: “Eu sinto que você será minha ruína”.

Aproxima-se do corpo dele e imita a abertura de um zíper, horror!

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Donny mantém contato com outras pessoas pelo Facebook. Martha descobre e diz: “Não lido bem com concorrência. Desperta meu pior lado”. Sim, pelo rechaço dos significantes da Castração, Martha não suporta a ideia do terceiro, da diferença, da ‘concorrência’.

Na lanchonete, Donny, tentando fazer valer algum sinal de castração, de corte, cobra de Martha o valor de 2,50 pela coca-cola. Martha entra em contato com o real separador, não suporta. “Então nunca sentiu nada por mim”? É a queda da ilusão e a decepção. 

Mas… agora é ele que não consegue suportar o corte. Tenta amenizar e justifica: é por causa da diferença de idade e afirma que quer ter filhos. Voltando ao delírio, ela se descobre fértil e reforça a “relação” com ele.

O passado traumático de Donny

A essa altura ficamos sabendo um pouco mais dele. Donny tenta carreira de comediante. Vai a Edinburgo. Se apresenta em locais sem muita expressão. Conhece um sujeito, Darrien, que o seduz e o leva às drogas. Em meio a experiências com drogas mais pesadas, Donny é sexualmente abusado por Darrien. 

As consequências de um estupro são terríveis para a vida psíquica. O sujeito é lançado à condição de objeto, dessubjetivado. Terá que enfrentar o abalo narcísico. Em Dunny, instala-se a dúvida sobre o que de fato aconteceu. Se tudo era manipulação do Outro desde o começo. Donny sente-se objeto de um gozo de Outro, de um outro que goza dele, de um outro que goza com um objeto. Donny sente-se objeto, objeto de gozo do Outro – posição insuportável onde a angústia mostra sua face cruel e despersonalizante. Daí em diante a sexualidade fica confusa, as pulsões ficam desnorteadas. 

Começam as fantasias de ódio contra o abusador.

Donny, “depois de meses de ódio, raiva e confusão…” precisa testar sua sexualidade e para isso vai se masturbar vendo filme pornográfico homossexual. O que pensa e fantasia não se sustenta mais, agora ele precisa testar na realidade, com o olhar. Não confia mais em si, precisa confirmar desde de fora. “Gozei rápido de um jeito que não me deixava negar que meu desejo mudou”, essa será a conclusão a qual ele chega.

A desorientação quanto à identidade pode ser uma consequência em casos de abuso sexual. Donny desenvolveu uma compulsão sexual, ‘transava com pessoas de todos os gêneros numa busca desesperada pela verdade’. A neurose por si já revela um sujeito em dúvida, longe da paz quanto à sexualidade. Tendo atravessado os horrores de um abuso sexual, as poucas certezas e as muitas dúvidas tornam-se imensas e angustiantes.

A repetição, o retorno da experiência traumática é uma constante em casos de traumas, e Donny relata que ‘acabava em situações onde arriscava ser estuprado de novo, tentando entender a primeira vez”. O inconsciente e o circuito pulsional retornam ao mesmo lugar para tentar uma saída diferente, consertar a cena. Pode acontecer de o sujeito acabar preso na armadilha da junção da repetição com a pulsão, restando um apelo ao gozo. 

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Como modo de defesa pós estupro, também desenvolveu reações corporais e emocionais. Não conseguiu mais se envolver com outras pessoas, tinha algo a esconder. 

E aqui algo de uma profundidade de difícil explicação veio a ocorrer, unindo identificação, transferência, deslocamento, projeção, assimilação, tudo isso expresso na seguinte frase de Donny: “Mas, quando Martha apareceu, toda aquela confusão sumiu, pois ela alcançou, sem esforço, as partes mais profundas da minha insegurança e as trouxe à tona”. A Psicose tem essa facilidade, menos camadas de sentido podem proporcionar uma visão, percepção, leitura, mais penetrante no inconsciente do outro. “Ela me viu como eu gostaria de ser visto”. 

Donny vai se dando conta de que as figuras de Martha e Darrien se confundem. Ele foi vítima de um perverso, abusador, agressor, psicopata que o fez de objeto para uso de um gozo sexual. Algo parecido, vê-se vítima ou presa da loucura de Martha que também o toma como objeto ou mesmo como espelho onde ela projeta sua psicose, seu narcisismo.

Martha passa a atacar outras pessoas da vida de Donny. São pessoas que representam um terceiro na relação imaginária que ela acredita ter com ele. Uma modalidade perigosa de ciúmes surge nesses casos, onde essa terceira pessoa precisa ser ameaçada, atacada e por vezes até eliminada. O mundo dos crimes encontra aqui uma forte causalidade. 

Uma sequência transformadora na via de Donny acontece nesse ponto. Ele vai à polícia, denuncia Martha. Martha silencia. Donny sente falta e a procura. Transa com Martha. Ela diz: “alguém te machucou”. Donny consegue fazer sexo com Teri, sua namorada trans, que fica feliz. Martha ativa a libido de Donny.

Após algumas reviravoltas onde Martha incomoda os pais de Donny, Teri termina o relacionamento com Donny e diz que há um gozo na relação dele com Martha. 

A narrativa de Donny

Durante um show de comédia onde o riso não aparece, Donny, ainda no palco com a presença do público, faz o relato do estupro. Expõe seu drama e seu trauma. Torna pública a condição em que ficou. Diz que Martha não entrou em sua vida por acaso. “Minha autoestima é tão baixa que deixei uma louca entrar na minha vida. Eu sabia que ela estava se apegando, mas continuei para satisfazer minha necessidade de atenção”. 

A autopunição, a afetação da autoestima, o abalo da autoconfiança e a repetição de situações sofridas são marcantes nesses casos. É interessante notar que sua narrativa se dá no palco, junto ao público, que o escuta, imóvel. As narrativas são eficazes quando ocorrem nos espaços públicos. É necessária a dimensão do terceiro – a dimensão pública – para que ocorra uma narrativa.

“É isso que o abuso faz com a gente. Me transformou nessa isca grudenta para todas essas pessoas esquisitas. Uma ferida aberta para farejarem”. Uma das piores consequências do trauma é a culpa que geralmente surge, culpa que aniquila o sujeito, o desvaloriza, pune, consome. 

“Depois conheci uma mulher linda, trans, mas não consegui amá-la. Agora vejo o que perdi nela. É porque eu amava uma coisa neste mundo mais do que a amava. Me odiar. Me odiava muito mais do que me amava”. 

A vida de Donny é revisada a partir do encontro com Martha e da forma erotômana que a relação se transformou. Ele não foi apenas vítima de Martha, ele também transferiu para ela seu mundo de fantasmas, também viu nela a possibilidade da repetição. 

Donny revela a seus pais sobre o estupro e sobre talvez ser gay ou bi. Diz ter medo de sentir-se menos homem por conta disso. Seu pai diz: “Você me acha menos homem? Eu fui criando na Igreja Católica”. Frases que revelam que seu pai também fora abusado na infância. A mãe, acolhedora, arremata com ‘saiba que estamos com você’. O Abraço entre eles encerra a cena, Donny aliviado. 

Por um ato falho dele, Martha acaba descobrindo o telefone de Donny. Ela reaparece.

Martha é presa. Julgada. Condenada. 

Donny procura Darrien, o estuprador. Aceita trabalhar com ele novamente. 

Donny escuta as mensagens com elogios que Martha enviava para ele. Entra num bar. Pede uma coca-cola com vodka.

Numa gravação Martha revela que bebê rena era um bicho de pelúcia que ela tinha na infância, do qual gostava muito. E que Donny era parecido com ele.

“Foi a única coisa boa da minha infância”, o bebê de pelúcia. Diz que abraçava o bebê rena quando era criança, nos momentos que os pais brigavam.

“Você é igualzinho aquela rena. O mesmo nariz, os mesmos olhos. A mesma bundinha fofa. Ela é muito importante para mim”. 

A pulsão se satisfaz com os mais diferentes objetos, objetos esses que um dia foram abandonados mas deixaram uma história. Diz o Freud que o eu é uma somatória desses objetos abandonados e com os quais nos identificamos. 

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